
Sempre me vem à mente a imagem do Monumento da Independência, surgindo por detrás das árvores. Era o caminho da casa da minha avó, roteiro de domingos sonolentos e ensolarados. Eu pequeno, intrigava-me aquele prédio esquisito, de pedra da mesma cor das pedras que o meu avô colocara em sua casa; fora os conjuntos escultóricos, simulando batalhas – que anos depois, descobri que foram inspirados no quadro de Pedro Américo, que está no Museu, algumas centenas de metros acima. O monumento, com forma de pedestal e marchetado de bronze era – e é ainda – coroado por uma biga triunfante, que leva alguma das virtudes personificada: talvez seja a Temperança, a Liberdade ou a Verdade, alguma alegoria calcada nas representações romanas; que país engraçado que somos, uns romanos de cocar.
O monumento, é o nosso Ara Patriae, e conseqüentemente, assim como a flama eterna do Templo de Vesta, há uma chaminha da liberdade, bem diante do monumento, para quem o vê de frente, desde a Avenida Dom Pedro I. Está lá, uma luzinha amarelenta. E sabe como são as crianças; não podem ver nada de diverso que se põem a interrogar os pais à queima-roupa. E eu não fui diferente; certa vez, ainda num tempo para mim sem data, subíamos já a pista lateral da praça do Monumento no Chevette azul do meu pai, quando o carro parou no semáforo, e eu, olhando o monumento, reparei na chaminha, que me fez lembrar do meu tio, fumante desde sempre.
— Pai, que que é aquilo lá? – apontei com a mão para fora da janela do carro.
— Põe a mão pra dentro, moleque! – advertiu mamãe – Quer ficar sem mão?! Passa um motoqueiro e zás!, decepa a tua mão…
Encolhi a mão, mas não a pergunta.
— Mas o que é aquilo ali?
— Aquilo o quê? – falei pondo novamente a mão para fora do veículo em movimento.
— Põe a mão pra dentro, Sé! Eu já não avisei?! – Virou-se a minha mãe para me dar a bronca à sua moda, olhando nos meus olhos. Amuei-me no canto, mas combativo ainda…
— Mas… mas… o que é aquilo?
— Aquilo o que?! – desvirou-se minha mãe.
— Aquele foguinho…
— Foguinho? – girou a cabeça ao redor – Que foguinho?
— Aquele… aquele ali. – E pudicamente estiquei a mão, sem a pôr pela janela.
Minha mãe olhou pela janela do motorista, através do meu pai.
— E eu que vou saber?!
— Aquilo – finalmente manifestou-se o meu pai – é uma chama sagrada…
— Sagrada?! – Já pensei eu em igreja, da qual eu me pelava de medo quando menor, pois durante a missa, eu não podia mover-me que alguém logo avisava “que igreja é lugar de respeito”, “que se deve estar quieto na igreja”, e a cara enfadonha e sisuda dos santos e a expressão sofrida de Jesus na cruz, faziam-me achar que o Padre batia nas crianças mal-educadas com o incensório ou com o atril… - Sagrada? Igual às velas que tem na igreja?
— Não… é um tipo diferente de sagrado… não é sagrado nesse sentido… não é sagrado de igreja, mas sim de pátria. - Respondeu calmamente meu pai.
— É sagrado de que?
— Hum… é na verdade simbólico… representa a independência, aquela chama…
— Ah, a independência…
— Isso… igual na escolinha, quando você foi o Pedro I…
— Eu não fui o Pedro I… escolheram o André que tem o cabelo mais escuro… a Professora disse que ele se parecia mais… eu fui o mensageiro… André… chato…
— ’Tá! Tudo bem… mas, em resumo, é aquilo. Aquela chama representa a Independência. Enquanto ela queimar, o Brasil continua independente e soberano…
— Soberano? – perguntei.
— É, soberano… livre, sem ter de prestar contas, como nós prestávamos a Portugal, entendeu?
— Entendi… mas o que que queima ali? A independência?
— Não, não é a Independência. A Independência não queima, é uma coisa que existe e não existe… não é igual uma pedra… não tem uma coisa que se chama Independência…
— A independência é igual a Deus? Que existe mas ninguém vê? A independência é Deus, pai? Pode-ser uma rocha, se não for uma pedra?
— Não, menino! Arre! Aquela chama só diz que enquanto ela ’tiver acesa, o Brasil não será dos portugueses… a idéia é exatamente essa…! – O semáforo ficou verde e carro lentamente começou a mover-se para pegar a lateral da Praça do Monumento. Fiquei olhando o Monumento girar-se e mudar os ângulos, sob o sol fulgente.
Uns meses mais tarde, já no outono, fazíamos novamente o percurso dominical e paramos no mesmo semáforo, e lá estava o mesmo monumento, que continua lá até hoje; só que o dia era dos típicos paulistanos: um céu plúmbeo e a finíssima garoa tão característica destas terras, o tipo de clima que muda a cor das coisas, das casas e dos prédios. O próprio monumento parecia mais escuro, envolto de cinza e úmido. Mirei na aberturazinha coberta e… onde estava a chama perene? Sumira…
— Olha lá, pai, onde ’stão os portugueses?
— Que portugueses, menino?
— Ali, ó! – apontei o nicho apagado, passando a mão sobre a cabeça do meu pai e pondo-a para fora do carro.
— Ô, põe a mão pra dentro, moleque! – berrou a minha mãe – querem que te cortem ela fora?!
Meu pai olhou o nicho.
— Ah, a chama? É que de vez em quando acaba o gás…
— Então a independência é movida a gás, pai?
— A Independência não é movida a nada, menino; de onde você tirou essa loucura?
— E não é o gás que faz a chama pegar fogo, pai?
— É.
— Então… e a chama não é a independência?
— Não, não é… digo, é e não é. Apenas representa.
— Mas apagou…
— O gás acabou… ou a garoa umedeceu o nicho e o bico de gás…
— Mas e os portugueses?
— Mas que português, homenzinho?!
— Que vêm quando a chama apaga…
— Não, Sérgio, eles não vêm…
— Não? Como não, se a chama apagou…
— Eles não têm interesse, nós somos economicamente inviáveis e politicamente insustentáveis…!
— Bem, pára com isso… - disse a minha mãe.
— Que venham os portugueses, pelo menos não são nem russos e nem americanos. Brezhnev… hunf! Francamente!
— Mas pai…?
— O que que houve, seu comunistinha? – disse meu pai vermelho (e ele nunca fica vermelho)
— E o foguinho contra os portugueses?
— Quando a gente chegar na sua avó, a gente põe fogo nela, que é espanhola… espanhol, português, dá tudo na mesma. Assim se resguarda a Independência e espanta os mosquitos.
— Ei, olha como você fala da minha mãe?! – vociferou mamãe desde o banco do passageiro.
— Sua mãe, a Independência, os portugueses, a União Ibérica, dom-pedros com bigodes de guache (bigodes de guache, meu Deus!), chaminhas e monumentos! Arre! Vocês dois, me deixem em paz.
Eu e mamãe não falamos mais até chegarmos à casa da minha avó.