segunda-feira, julho 31

338. Diário de viagem de Belgrano


Belgrano em São Paulo

Belgrano, um simpático pingüim-de-magalhães, está de passagem por São Paulo. Segundo o que ele me relatou, o que mais o impressionou foi o fato de não vermos a morte, que a todo instante acerca-se-nos. Conversávamos na sala de estar e ele batia as nadadeiras contra o corpo produzindo estalos parecidos com palmas. «Como pode?! Vocês não vêem nada!»
Contou que, assim como se vê a morte nas gravuras, ela não foge muito em aspecto. «Só que não deixa que lhe vejam o rosto», complementou Belgrano. Ele afirma que o rosto de caveira que atribuimos à morte é inveção nossa, e a eles, pingüins, lhes é permitido ver seu rosto. «No estreito ou na península, ela vem montada num leão-marinho, sobre as águas - que pra nós, é a própria idéia da morte, entende? - com a mesma capa preta e a foice de cabo longo. A única diferença é que pra nós, ela aparece com a cabeça descoberta... porque, com a beleza do seu rosto e dos seus cabelos, faz os pingüins todos pararem na praia, estupefatos... aí vem os leões-marinhos e... bem, você já sabe o resto.»
Belgrano continuou relatando que em São Paulo, em poucos dias da sua estava, viu a morte em diversos lugares. Uma vez, sentada sobre o semáforo de um perigoso cruzamento e sem capuz, deixando os longos cabelos negros e ondulados esvoaçando no vento frio de inverno; outra vez, no metrô, na beira da plataforma sentido Corinthians-Itaquera da estação Sé, um passo depois da faixa amarela, deixando os cabelos voarem com o ar empurrado pelo vagão para dentro da estação e raspando a lâmina da foice na pedra da beira da plataforma, melancolicamente. «Sorte de vocês que não a vêem... as mortes seriam em dobro». E Belgrano diz que ela anda por aí, no encalço dos corajosos e de quem arrisca demais; na porta dos hospitais, atrás dos já feridos pela sua gadanha, mas que precisam de um segundo golpe, «de misericórdia, por assim dizer».
Voltamos aos temas das suas viagens. Disse que passou em São Paulo só para me visitar: «Não gosto muito de São Paulo, é uma cidade feita pela classe média e para a classe média... não tem raízes e não se pensa duas vezes em trocar a história pelo dinheiro». Belgrano diz que pretende conhecer o mundo. Isso é, se a morte dos cabelos ondulados e esvoaçantes o deixar fazê-lo.

3 Comentários:

Blogger júlia disse...

gostei desse pingüim.
o levi-strauss fala no 'tristes trópicos' que a diferença entre as cidades sul-americanas 'em desenvolvimento' (não, ele não usa esse termo) e as cidades européias 'consolidadas' é que aqui 'o novo' é a instituição. como bem se vê, a coisa tem dois lados, o bom, em que 'teoricamente' novas soluções seriam (teoricamente, novamente) mais fáceis de serem realizadas e o outro lado, é de que nada é feito para durar, o kitsch impera e tudo fica com cara de remendo. quem me disse isso foi o eduardo, que deve saber dizer isso bem melhor do que eu, mas deu pra entender, não deu?
besos.

segunda-feira, julho 31, 2006 2:49:00 da tarde  
Blogger Jeferson Ferreira disse...

o que dizer? é especial, meu caro, especialíssimo... como disse em outras oportunidades, apenas você tem esse toque entre o fantástico e o real; uma concretude que se esfacela em mágica, e uma mágica que se revela, podremente, como concretude.

quarta-feira, agosto 02, 2006 10:16:00 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Lembrei-me dos pingüins do Anatole France. Com a diferença de que aqueles não se horrorizavam com nada.

quarta-feira, agosto 02, 2006 5:01:00 da tarde  

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