terça-feira, maio 9

306. Curta fábula urbana (IV)

O repolho

Maria na feira, acostou-se junto da banca de verduras. Chamou-lhe a atenção particularmente uma volumosa e bela cabeça de repolho. Pensando na salada para acompanhar o jantar daquela mesma noite, deu o real e meio que lhe pediu o verdureiro pela cabeça. Alojou o nobre vegetal no carrinho, junto com as bananas e tomou cuidado para que ela não se lançasse acidentalmente sobre os maduríssimos caquis, caso a roda do carrinho viesse a cair em alguma irregularidade do passeio público. «Seria como se a Luftwaffe estourasse os caquis…», pensou Maria, que cuidadosamente foi puxando o carrinho para casa, observando bem a calçada para que a roda não enroscasse em alguma fenda que lhe desse trabalho para desalojar o carrinho.
Em casa, Maria começou a esvaziar o carrinho e ao tirar a cabeça de repolho, segurou-a com as duas mãos, numa atitude materna, e olhou-a cheia de ternura: «A mão de Deus certamente anda por essas coisas…». Suspirou e pôs o repolho na geladeira, junto com uma indigna couve-flor e um bastardo pé de alface. Pareceu que ali, entre as outras verduras, a cabeça de repolho fazia-se ainda mais viçosa, a ponte de parecer ter aumentado de tamanho. «Bela salada, bela salada!», pensava consigo Maria, excepcional dona-de-casa, rainha do lar, mãe de três rebentos, o modelo de mulher católica, fazia parte ainda da Liga das Senhoras da Paróquia e era sempre citada pelo pároco como exemplo de virtude.
O dia decorreu tranqüilamente, Maria terminou de limpar a casa, polir a prataria, tirar água do poço e tudo mais. Quando o arrebol do ocaso tingia a copa das árvores de vermelho, chegou João, marido-modelo. As crianças, que até agora brincavam com jogos de montar, correram a beijar o pai que, agradecido, abaixou para receber os beijos. Mesmo cansado de ônibus e com um emprego cretino, era sua alegria chegar em casa e saber que estava tudo bem.
Beijou a esposa pudicamente, perguntou do dia e o que havia ela feito de janta. Maria elencou todo o primoroso cardápio e citou a salada que faria de parte da esplendorosa cabeça de repolho que comprara na feira, pela manhã. As crianças, disfarçadamente, torceram o nariz. João enumerou para as crianças as nutritivas e salutares propriedades duma salada de repolho; as crianças o ouviram como ouviriam o avô Jonas roncar.
«Sentem-se todos à mesa que vou somente cortar o repolho e temperá-lo que já me sento com vocês», disse Maria. Todos tomaram seus lugares. Maria tirou a cabeça de repolho da geladeira e mostrou a família. Maria suspirou de alegria e parece que o repolho também tinha suspirado. Impressões, a mão de Maria oscilou junto com seu diafragma.
Maria apoiou a hercúlea cabeça de repolho sobre a tábua de carne, que estava já ali por ter sido o patíbulo das cebolas e sacou uma grande faca da gaveta dos talheres. Maria apoiou o corte da faca verticalmente junto da lateral direita do repolho e tirou-lhe o primeiro talho, fino e delgado. Nesse instante, começou um ruidozinho, fino, agudo e baixo. «Que é isso?» perguntou João. «Isso o quê?», retrucou Maria. «Esse barulhinho…». E o barulhinho agudo começou a aumentar e, com não pouca surpresa, a família apercebeu-se que o barulho, que de mais e mais alto era já um grito, vinha do repolho. «Mãe, mãe; repolho grita?», perguntou Miguel, o mais novo. «Claro que não!», impacientou-se Maria. O grito foi ficando mais alto e cada vez mais insuportável. «Meu Deus! O que é isso!» disse João, persignando-se. Maria não tinha palavras. As crianças correram para o quarto e certamente estavam escondidas. «Deve ser o Demônio, o Demônio está no repolho», berrou João.
O repolho emitia já um som tão alto que já havia curiosos na rua, defronte à casa. «Temos de fazê-lo parar», exasperou-se Maria, João sugeriu de pôr o repolho num saco plástico e assim ele morreria asfixiado. «E quem é que vai por a mão nesse repolho endemoninhado?, você, não é?!» berrou Maria apontando a faca a João. E o repolho continuava com seu grito estridente e contínuo. «Mas que horror! Ele não pára nem pra respirar!», considerou João, «Eu não vou pôr a mão nessa droga de repolho» e saiu correndo de onde estava, junto da porta da cozinha, com Maria, em direção ao quarto. O repolho continuava a berrar sobre a pia. João voltou com um revólver. «Não, você não pode fazer isso!», disse Maria, segurando a mão a João. «Quero e posso!», disse João dando um empurrão em Maria, fazendo-a dar três ou quatro passos para trás; empunhou a arma e deu três disparos certeiros no repolho, que imediatamente parou de gritar.
Não teve jantar naquela noite. Maria pegou uma mala, enfiou umas roupas nela, pegou as crianças e foi para a casa da mãe. Só, João ficou com o repolho agora silente; atacou a adega, bebeu a madrugada inteira e contou todas as suas desventuras até o fato do repolho para o próprio repolho, que jazia ali, na pia, espatifado. João e Maria se separaram. João virou um beberrão de marca maior e morreu durante uma sessão de eletro-choque numa clínica de reabilitação de alcoólatras, enquanto contava a história do repolho; Maria caiu na vida, foi vista na rua Aurora há algum tempo. As crianças, criou-as a mãe da Maria, que tinha uma prima que era Madre Superiora e as pôs num colégio religioso. Miguel, o menor, foi ser missionário em Uganda; André, o do meio, virou funcionário público e Maria Auxiliadora, a mais velha, passou a vida inteira perguntando-se o que aconteceu aos seus pais.
Moral da história: deve-se sempre olhar bem o que se compra para comer.

10 Comentários:

Blogger Mónica disse...

não li tudo mas não resisto a perguntar o que é "caqui" (para mim é um tecido, para fazer fardas, por exemplo) e então come-se o repolho em salada?? salada crua?? tou curiosa para saber a receita!
depois leio o resto :-)

quarta-feira, maio 10, 2006 1:40:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Sem Cantigas,

Caqui é uma fruta que não tem na Europa (pro azar vosso, porque é delicioso! rs). Tem um tipo deles que se come bem maduro e como é excessivamente mole, deve-se evitar o contacto com coisas duras ou mãos pouco delicadas; talvez vocês o conheçam com outro nome. Sim, come-se o repolho como salada, igual aos tomates... vinagre, sal e azeite...

quarta-feira, maio 10, 2006 1:45:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

2-0 estou a aprender!
caqui será diospiro, fruto alaranjado? qto à couve não sei, achas que arrisque a receita, ah se sair mal a culpa é do príncipe!!!!!

quinta-feira, maio 11, 2006 3:03:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Hum... couve não é repolho... pelo menos não por aqui... (rs). Dióspiro... acho que é sim... o Eça fala dele em algum dos romances, não lembro em qual.

quinta-feira, maio 11, 2006 4:14:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

repolho é um tipo de couve! essa que está na fotografia, lol, ou não????
então detesto caqui! muito doce blheccccc

quinta-feira, maio 11, 2006 5:00:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Não, cá nas minhas plagas sub-tropicais (ou semi-temperado de altitude, tanto faz!), esse que forma cabeça é o chamado repolho; temos também um tipo de couve que forma cabeça, mas é mais escura. A couve de cá, dita couve-manteiga (pelo menos é o tipo mais comum) é de caule longo e folhas abertas que saem espaçada e alternadamente do caule, em direções opostas (vou ver se encontro uma fotografia). Mas, em suma é isso, couve não é repolho... (rs).
Agora é a época dos caquis (ou dióspiros, enfim!) e sinto o cheiro deles a distância, isso mesmo detestanto feira livre, maravilha dos trópicos. Mas tem em Portugal também? Ou são importados.

(estamos uns quitandeiros hoje, hem?)

quinta-feira, maio 11, 2006 5:41:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

tamos! mas olha que não sou boa pra discutir couves! essa couve aberta chama-se couve portuguesa! e há a couve galega, couve lombarda (de folha frisada), couve coração, mas não percebo, compro e ponho na sopa!

o diospiro é de uma árvore que há muito aqui pelo norte (n sei no sul...) no inverno fica totalmente sem folhas e apenas com os frutos pendurados dando a ilusão de uma árvore de natal com bolas a enfeitar! vou mandar-te uma fotografia da árvore pode ser?

quinta-feira, maio 11, 2006 6:18:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

quitandeiros... diria uns camponeses de cidade! apesar de viver num meio rural, produção de vinho, batatas, azeite, não percebo nada de agricultura nem época de semear nem época de colher... :-))))

quinta-feira, maio 11, 2006 6:19:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

esquece a fotografia! sou mm parva tu conheces o fruto deves ter aí árvores que chegue!!!!!!!!!!

quinta-feira, maio 11, 2006 6:29:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Couves, couves. Detesto couve! E na sopa? Como diria a Mafalda, sopa já é uma porcaria intragável (rs) e com couve ainda! É o próprio feixismo!

Sei de algumas coisas de plantas, porque a minha avó (galega ela, inclusive) mora conosco e planta umas plantinhas no fundo do terreno para se distrair... por isso o conhecimento «empírico» das couves. Quanto às datas, fico com as informações do pacotinho de sementes (rs). Lembro-me da primeira vez que fui para a Província; o interior do Estado é bem plano e de soja a perder de vista... nunca tinha visto tanta plantação... foram quase 500 quilômetros a olhar para as plantas...

Sim, sim, manda-ma, a fotografia; quero ver o caquizeiro... na casa onde nasci havia um bem junto da janela da frente. Ora, pode ser que os caquis sejam diversos... como as nossas sardinhas que não são exatamente a mesma espécie das vossas...

sexta-feira, maio 12, 2006 12:05:00 da tarde  

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