Burocracia e jardinagem
Há plantas que são burocráticas. É o caso dessa folhagem verde genérica que tem em todo jardim mantido pelo Público Poder (seja administração directa, indirecta, autarquias ou economias-mistas); não faço a menor idéia do seu nome, do seu binômio latino então, nem sombra. Ela dá um aspecto fofo e macio aos canteiros, uma certa bonomia estúpida; sempre plantada e disposta geometricamente. Suas folhas grandes e brilhosas parecem untadas de óleo, engorduradas levemente. Já vi mendigos deitados nelas, como se fossem uma grande cama.
Definitivamente é uma planta burocrática, sobrevive em ambientes com pouca luz ou ventilação, daí sua existência também em estúpidas jardineiras (de concreto ou de amianto) e estreitos jardins internos, circulando as notórias estátuas cujos nomes desconhecemos. Ou por ignorância ou porque a aplaca foi levada por algum espírito-de-porco.
Avícola, mercearia e livraria ltda.
Vivo atrás de livros, ou eles que me perseguem no inconsciente. Isso pouco importa agora; importa o fato de eu estar novamente atrás de determinada obra literária. Precisava ler A Ilustre Casa de Ramires, do Eça de Queiroz. Aproveitando a ida às Galerias da Aricanduva para comprar umas calças e umas camisas, fui também à livraria.
Livrarias de shoppings suburbanos costumam ser não muito diversas dum castelo dos horrores; logo à entrada, põe-se o que mais vende, ou seja, os famigerados livros de auto-ajuda, misticismo barato, má literatura e misticismo com ares literários. Essa indigesta recolha geralmente forma uma barreira que me é intransponível; mas eu precisava do livro, tive de passar pelas infames prateleiras, veja-se bem, não sem esforço e não sem que me doesse a vista. Passado o báratro, esbarrei no vendedor (esbarrei porque nos últimos centímetros tive de fechar os olhos); ingauei-lhe:
— Bom-dia; o que você tem do Eça?
— Essa…? É o nome do autor ou da obra?
Fiquei um pouco reticente. Certo, no nosso país, é pedir muito que todos tenham lido Eça de Queiroz.
— Do autor…
— Qual obra?
— Preciso d’A Ilustre Casa de Ramires.
— Vamos até o terminal ver se tem.
Acompanhei-o até o fundo da loja, tropeçando em livros de feng-shui aplicado às finanças e florais de Bach aplicados aos laboratórios de Física Nuclear. Chegados ao terminal, o rapazola iniciou a digitar, e eu de escanteio vendo. Ao invés de escrever «ilustre», saltou-me aos olhos um «ilustri», com «i».
— Não. – intervi – ilustre é com «e».
— Ah, tudo bem.
Recomeçou a digitar. Saiu um «elustri».
— Não; o «i» do começo estava certo, o «e» é no final.
— Ah, tá.
Depois de um rápido processamento, o terminal indicou que a obra não estava disponível naquela loja.
— Mas tem na outra… - disse o vendedor.
— Também – grunhi entre os dentes – quem será que lê Eça nesse posto infecto?
— Como?
— Nada, nada; estou resmungando cos meus botões. Certo, vou dar um pulinho na outra loja. Afinal, para que ler Eça nesse lugar não é? Bom-dia.
— É… bom-dia; mas na outra loja tem, viu?
— Pode deixar – respondi com voz grave e indo embora com as mãos nas costas – e caderno de ortografia, você tem?
— Não; talvez na papelaria ao lado… - apontou com o braço.
— Mas dicionário tem, não é?
— Tem sim. – virou a cabeça em direcção a uma estante.
— É uma obra de consulta, viu? É bom para consultar; ajuda muito…
— Sim, eu sei. O senhor quer ver algum?
— Não, não. Deixa pr’outra hora; preciso do livro.
— Boa sorte, então.
— Pra você também; vai precisar.
Pensamentos a granel
Não se deve confiar em pessoas com documentos oficiais cujas fotos apresentem faces sorridentes.