terça-feira, maio 31

Um dia, um dia

Quando abrirem esse testamento, não adiantará mais me maldizer, pois tão-já estarei no Inferno; mas o pouco que tenho, que não serve para nada nem para ninguém, o rateio assim:

Os meus diários, por favor, messer Donato, mantenha-os consigo para queima (como já disposto em versão anterior desse documento), fazendo antes a derradeira anotação; a minha coleção de moedas truste, que voltem aos seus donos, vivos ou mortos (Breno, Donato e o meu falecido tio-avô José); meus livros, a uma biblioteca pública; o que houver no bolso direito das minhas calças, deixo ao Érico, o direito geralmente está vazio; ao Nilton delego a tarefa de queimar o meu envelope de originais, para que eu não caia no ridículo dos escritores medíocres, nem vá nada parar em horrendas antologias; os meus discos, os deixo a messer Orlando. O meu coração, repartam-no e dêem um pedaço para cada um dos meus afectos mal-sucedidos; a minha cabeça, separem-na do corpo, para que os meus pensamentos não me persigam na Vida Eterna, de preferência bem-longe, na Argentina. Mandem os meus olhos para a Europa: o direito para Florença e o esquerdo para Moscovo.

Do meu emprego e das minhas rendas – pois há que os cobice – que façam o que bem entenderem.

Quem pagará meu enterro e meu funeral? Quem pagará um cruz de metal? Toquem o Glória do Ivan Susanin. Isso pouco importa, já terei ido. Me interessa tanto quanto quem irá virar a folha do meu calendário ou escutar o meu despertador tocando de manha; ou quem estiver dormindo na minha cama, vestindo o meu pijama.

segunda-feira, maio 30

Em qualquer porto

As amarras se soltam, num ranger desesperador. O navio parte; no cais, a bandinha toca Deus salve o Czar; balões e serpentinas. Mas e lá, do outro lado? Que haverá?

quinta-feira, maio 26

Somnis perduts / Sonhos perdidos

II

Lá fora o vento como uma voz
monologando entre as frondas, implacável.
Tenho campo e telheiro.
E tenho animais e nomes que fui criando
pelo louco intento de viver em mim.
Tudo se apaga em silêncio nesta noite.
Pela ilha inteira eu me sinto a mim mesmo
semelho deserto onde as dunas se alisam
desfazendo o engenho das miragens minhas.
Não me peçais que diga o quanto hei lutado,
nem por que fui feliz ao poder contar,
feitas num pau, incisões marcando os dias.
Entre esses talhos o tempo me venceu
sem um diálogo. Este fogo mutável
vai-me esclarecendo a história do deserto
em meu âmago. Para um homem somente
há esse caminho que volta sempre ao fundo
solitário da alma, e onde se perde
toda pergunta num vento errante.
Na lomba do tempo já criei figuras,
nomes, mudas inscrições de um cemitério.
Restam apenas as letras do meu nome
com um ouro que se apaga, no arenal
entregue sem defesa ao vir das ondadas.

(II

A fora el vent com una veu
monologant implacable entre els arbres.
Tinc un camp i un cobert.
Tinc animals i noms que he anat creant
pel foll intent de viure’m.
Tot s’apaga en el silenci aquesta nit.
Arreu de l’illa em sento a mi mateix
com un desert on les dunes s’allisen
per a esborrar l’enginy dels meus miratges.
No em demaneu com és que he lluitat tant,
ni per què era feliç podent comptar
incisions dels dies sobre un pal.
Entre les osques m’ha vençut el temps
sense diàleg. Aquest foc mudable
em va aclarint la història del desert
que duc a dins. Per a un home tan sols
hi ha aquell camí que sempre torna al fons
solitari de l’ànima, on es perd
tota pregunta en un gran vent que passa.
Al llom del temps he creat noms, figures,
mudes inscripcions d’un cementiri.
Resten només les lletres, en el sorral
lliurat sense defensa a les onades.)

Francesc Faus

Fragmento de Vent nocturn sobre l’illa (Vento noturno sobre a ilha), do livro La roda i el vent (A roda e o vento), traduzido do catalão por Stella Leonardos.

quarta-feira, maio 25

São Paulo, cidade aberta. Algumas visões

Choveu e choveu muito; a linha C da CPTM ficou em alguns pontos coberta pelas águas do Pinheiros, pontos de alagamento, espelhos d’água traiçoeiros, centena e meia de quilômetros de engarrafamentos diversos e a granel; ônibus entupidos, metrôs tardígrados e trens submarinos. Um prefeito balbuciante e sem-acção; e nós todos à mercê de tudo isso e muito mais; eventuais aproveitadores assaltantes* os carros parados, banhos cas tsunâmis provindas das sarjetas, sapatos empapados e borbulhantes, barradas de calças badalantes. A música é o correr da chuva e da água a correr pelas canaletas, fora o ronronar dos motores e as eventuais buzinas impacientes.

Vejamos alguns testemunhos.

Glafkos Eleftherios Papandreou (irmão da Maria), professor de língua neo-helênica
Tenho algumas armas contra essas calamidades públicas: um toca-fitas portátil e uma fita da Elli Paspalá; além da Bíblia do Caos, do Millôr.

Mateus Pantoffoli, usurário eventual
Fiquei preso umas três horas no trânsito, mas não vi nada, fiz todo o caminho dormindo, o que me rendeu a boca seca e uma bela duma torcicolo.

Maria Domitila Militão Prado e Souza, socialaite
Tive um ataque histérico na Marginal; sai do meu carro com uma colher de pau que encontrei no assento do passageiro (e que não faço a menor idéia de onde tenha saído) e saí decepando espelhos retrovisores. Foi necessário que viessem quatro pessoas para me acalmar. Hoje eu estou melhor: me deram um remédio que me faz aparecerem triângulos amarelos no campo de visão. Mas eu não disse nada ao médico.

Ricardo Liebenvolk, vagabundo graduado
Hã? Não vi nada. Estava dormindo.

Antonia Hubón Lagos y Sánchez, imigrante boliviana
Que caos! Volto hoje mesmo para Santa Cruz de la Sierra.

Bernardo João Malgrado, consultor e psicótico
Sabe, isso que chove, que cai do céu… isso não é água… porque ninguém bebe. Na verdade (e ninguém sabe, estou contando só pra você, hem?) chove urina. É, é isso mesmo; Deus odeia a Humanidade e vai alagar tudo de mijo! (corre e larga o entrevistador).

Márcio Papaglossa, estenodactilógrafo e apedeuta plantonista
Como eu consegui chegar até o trabalho? De ônibus, estúpido; ou você acha que eu vôo?

Júlio Ferreira Moreira, meteorologista e doidivano
Tantos milímetros, choveu tanto; precisaremos de todas as réguas que a indústria puder produzir; de todos os milímetros disponíveis (começa a escarafunchar os bolsos e tira uma trena) e você, vamos, contribua, me dê as suas réguas! É uma situação de emergência pública.

terça-feira, maio 24

Hymnus Latinus Unionis Europaeae

Est Europa nunc unita
et unita maneat;
una in diversitate
pacem mundi augeat.

Semper regant in Europa
fides et iustitia
et libertas populorum
in maiore patria.

Cives, floreat Europa,
opus magnum vocat vos.
Stellae signa sunt in caelo
aureae, quae iungant nos.

(Peter Roland e Peter Diem, Áustria, 2003)

Versão audível.

segunda-feira, maio 23

Un riassunto sul film di Naomi Klein e qualche apronfondimento sul tema della bancarota argentina



(texto originalmente feito para a aula de Língua Italiana)

Naomi Klein ci racconta sul suo film girato sulle fabbriche argentine chiuse che vengono occupate dagli operai, dovuto alla situazione provocata dalla bancarotta del 2001. Il film discorre sull’angoscia della gente che di un attimo all’altro vedono sottrarle tutte le economie di una vita; e la situazione degli operai, che dopo la chiusura delle fabbriche, hanno assunto la loro gestione, riattivando da soli la produzione.
La situazione era davvero disperata, e gli operai si mostrarono molto più efficaci dei vecchi padroni o del proprio ex presidente Carlos Menem che alle soglie degli anni ’80 e al comincio degli ’90, iniziò un grande programma di privatizzazione dei pubblici beni, risultando in un tragico aumento del carovita perché le tariffe dei servizi privatizzatti erano cobrate in dollari.
Ancora alle fabbriche, i padroni mantenevano cattive politiche amministrative, come il successo alla Bruckman, dove vietavano gli operai di bere il mate insieme e vietando anche che parlassero tra di loro mentre bevevano il mate (si credeva che, preso da solo, l’infusione avesse qualche efetto più stimolante del normale), mantenendo gli operai socialmente isolati.
E così, si sono andati dal mate all’occupazione delle fabbriche; hanno fatto tutto quello che dovevano aver fatto i padroni, i cui sempre intascarono i guadagni senza investire nelle fabbriche e indebitandosi con la complicità del Governo. E quando i legittimi proprietari tentarono di riassumere qualche fabbrica, usando delle pubbliche forze, gli operai resistirono per manu militari, come gli operai della Zanon, dove loro hanno gettato palle di ceramica verso gli agenti, e le madri degli operai, all’altro fianco della barricata si accercavano degli agenti gridando e piangendo.
Dopo la crisi, si apre altra volta il populismo, portando Menem al ballottaggio del 2003; e Klein lo paragona con la doppia elezione di Berlusconi.
Insomma, con la crisi cambiale che si svolgeva dal 1999, facendo con che le riserve monetarie argentine scendessero quasi al zero, una situazione di estrema periculosità si è instaurata in Argentina, ancora peggior dopo la confisca del denaro che era alle banche. Il governo limitò le ritirate e liberò la tassa di cambio del dollaro; l’economia, che era tutta dollarizzata, si crollò; le fabbriche come dice il testo, sono state chiuse perché il prezzo delle materie necessarie era fissato in dollari, notandosi che la tassa di cambio poco prima della confisca era circa 1,01 peso, salì in meno di dieci giorni a quasi 4,10 pesos. Il paese si immerse nel caos per qualche mese, avendo come corollario i processi sociali non solo quello del testo (le fabbriche amministrate dagli operai), ma altri come i suicidi, la piccola emmigrazione argentina verso le provincie del nord (Corrientes e Missiones) e anche per lo stato del Rio Grande do Sul.
Nonostante, la crisi argentina non si restrinse al paese, ma si spande per l’Uruguay, paese economica e culturalmente vincolato all’Argentina. Situazioni simili si sono osservate a Montevideo.
I «salvatori» della politica forse è un fenomeno di popoli angustiati e disperati; la vittoria dei justicialistas (il partito peronista, a cui appartiene Menem) ci prova questo. Prima, la popolazione ha preferito Fernando de la Rúa (dell’Unión Civica Radical, centro sinistra) al candidato di Menem, allora presidente, che era il suo Ministro dell’Economia, Domingo Cavallo, artefice del piano di dollarizzazione per controllare l’iperinflazione; poi, le manifestazioni e i disturbi costringono De la Rúa a rinunciare; al suo posto, viene acclamato presidente, il justicialista Adolfo Rodríguez de Saá, e alle ultime elezioni presidenziali, viene eletto Néstor Kirchner, anche justicialista. Non è certamente il caso dell’Italia con Berlusconi; che forse è stato ricondotto alla Presidenza del Consiglio per una certa noia degli elettori.
Fenomeni simili di popoli o annoiati o disperati si vedono: il Brasile con il secondo Governo Vargas (1951-54, però costituzionale, non come quello del 1930-45), la Germania, che nel 1933 ha eletto Hitler come Cancelliere e gli diede i poteri di poco in poco, perfino che fosse il capo assoluto e incontestabile del Reich.
Ed anche qui a San Paolo, dove abbiamo un ex sindaco, il cui la prima volta che fu sindico, fu indicato dalla dittatura (era quello che chiamavamo il prefeito biônico) e dopo la Redemocratização del 1985, nel 1992, viene rieletto dai municipi e c’era (e c’è ancora) la coscienza che questo ex sindaco è uno dei vermi della dittatura.
Gli operai argentini dimostrarono che l’amministrazione comune è possibile (e come brasiliano, io devo per forza riconoscere il sucesso), e così ci illuminano la strada verso l’avvenire, che potrà essere meno sbucata di come ci sembra oggi. Amministrando bene i risorsi e cercando di evitare la corruzione; che infelicemente, è comune in tutti i due fianchi del confine.

sexta-feira, maio 20

Diário Oficial da Venárdia

O Ministério da Cultura Popular do Sereníssimo Principado da Venárdia (Minculpop), por intermédio da Direcção Geral de Política Lingüística (Digepol), torna pública a portaria d'Entradas-e-Saídas de palavras do português (variante venarda, ou pt-vn); aprovado pelo Elevadíssimo Senado e sancionado por Sua Alteza. As punições dos usuários das palavras prescritas são de acordo co inciso LXII do artigo 1.178.º da versão simples da Constituição do Principado: forca ou queima em praça publica.

Palavras ingressantes (input)

  • ata;
  • carimbo;
  • pauta;
  • processo;
  • protocolo;
  • protocolar, protocolarizar.

Palavras retiradas (output) pra nunca mais retornarem:

  • borderô;
  • cartão de crédito
  • cliente, clientivização;
  • conta-corrente; conta-poupança;
  • correntista;
  • crédito-imobiliário;
  • empréstimo;
  • taxa de juros;
  • parcela.

O cidadão pego em flagrante no ato de pronúncia de qualquer uma das palavras excluídas e execradas, está sujeito às penas existentes.

Sanciono e faço publicar.

quinta-feira, maio 19

Mondo cane (II)

1.

Meu chefe é absolutamente histérico, delirante e húngaro; povo geralmente taciturno e melancólico. Esse é um húngaro totalmente fora de qualquer especificação, fica nervoso e berra. Houve um tempo que as pessoas histéricas me assustavam, mas com o tempo, aprendi a encará-las como quem vê um espetáculo medíocre de circo interiorano; quando ele começa a urrar, simplesmente viro a minha cadeira na sua direção e respondo suas perguntas calma e placidamente, pausando e pesando cada palavras, enquanto ele berra, gesticula e usa de três a quatro onomatopéias numa frase curta. Continuo a mirá-lo como quem olha para um lago raso e conversa com as carpas; é quase certo que as carpas pensem mais que os chefes.

* * *

2.

— Você está atrasado de novo…

— Realmente. É o trânsito; a rua das Tílias estava simplesmente que não andava.

— Saia mais cedo de casa!

— Mais cedo?

— É, uma meia-hora mais cedo…

— Hum… (aproxima-se do supervisor e inspira o ar circunvizinho) Bem que eu desconfiava…

(o chefe põe-se a cheirar-se)

— Desconfiava do que?!

(calma e lentamente, com tom didático)

— O cheiro de água-de-colônia não vem da sua pele, mas sim da sua boca. Recomendo que pare de beber loção pós-barba, o barato é legal, eu sei, mas irrita a mucosa do estômago e é cientificamente provado que causa alucinações… como essa sugestão estapafúrdia que o senhor acabou de me dar… tem um grupo de pesquisa da Universidade Estatal que estuda esse tipo de vício; posso passar-lhe o telefone…

(os funcionários circunstantes observavam; o chefe estava quase roxo e amuado)

— Ha… he, he! Boa, hein! Ho, ho… até a hora do almoço… he, he.

(afasta-se; o funcionário começa a afastar-se também e a assoviar o final da Abertura 1812 e imita com perfeição o disparo dos canhões, cada um acompanhado de um gesto de «banana»).

* * *

veja ainda Mondo Cane (I).

terça-feira, maio 17

O bêbado

(um homem, do alto de um sobrado, sentado no beiral, de madrugada, fumando com uma garrafa de bagaceira do lado; vários minutos em silêncio, de-improviso, começa a falar)

— O vazio… o vazio!; um correr cego e insensível, ao gosto do balouçar da procela. O nada horríssono, o choro sem consolo; o nada, o nada! Nada cheira, nada se move mais, move-se só aquilo que deveria ficar parado, o vento só vem atrapalhar. (ouve-se o choro duma criança, instantes reflexivos). Veja, chora e ainda não sabe o que lhe espera. O nada, trinta e cinco anos de labor inútil, vendendo barato o seu tempo, barato, praticamente de graça, pois o tempo, ao contrário do dinheiro, é irrecuperável. E gente mesquinha; e afinal, qual foi o infeliz, o primeiro macaco consciente que pôs o trabalho como valor? De seguir as ordens de chefes que não raciocinam e querem tudo para ontem, num vórtice de desordem; o desprezo profundo pelas Humanidades e endeusamento das Ciências Mercantis e Contábeis, uma geração de vendedores analfabetos; de estudantes que passam de ano empurrados pelo Sistema de educação! Não são capazes de ler um folheto. (toma um trago da garrafa)

— (de uma janela acesa, sai um homem em robe-de-chambre) Vai dormi’, vagabundo! Se você não tem nada p’ra faze’ amanhã-de-manhã, deix’as pessoas de bem dormi’!

— Lembrou-me uma vez, uma chefe minha, acho que foi quando trabalhei na contagem de ladrilhos, contou um dia de manhã, que havia recebido um trote telefônico no meio da madrugada de domingo para segunda-feira e a pessoa do outro lado lhe chamara idiota, e ela, pobre-coitada, toda benevolente (ca voz em falsete): «tenho realmente muita dó dessa pessoa, certamente não tem um emprego, nada p’ra fazer na segunda de manhã; perdi até o sono de dó». Tanta benevolência mercantilista,… juro,… quase me fez… vomitar. (deita-se nas telhas e passa a observar o céu). Tantas coisas que se passam lá-em-cima, galáxias gigantescas, maiores do que qualquer coisa que o homem possa ver, mistérios infinitos, suficientes para consumir vidas e vidas a pensar neles; e aqui mesmo, tanto para saber de mais consistente; e as pessoas perdidas nessas vidinhas; essas vidinhas de dinheirinhos, de mesquinhariazinhas, de pensar em estratégias de vendas; como essa palavra me enoja!

— (de uma janela fechada) Antonces toma um sar-de-frutas e vai dormi’!

— Civilização mercantilista! De banquinhos! Banquinhos ridículos! Cofrinhos crescidos! Se Rômulo e Remo e os gregos desconfiassem no miasma que resultaria de todos os seus esforços, do dilatamento das fronteiras a ferro e sangue, certamente não se teriam dado ao trabalho… (suspiro profundo) e há ainda tantas coisas belas, tardes de primavera… tépidas e cálidas tardes de primavera…

Adormeceu. Como era no inverno; acordou com uma terrível pneumonia. Trancou-se no quarto durante duas semanas, sem se alimentar direito, debilitou-se e morreu. A polícia achou o cadáver, já semidecomposto com um sorriso fino ainda preso entre os lábios.

segunda-feira, maio 16

Mondo cane

1.
— Ah, você é bancário? E o que você faz no banco?

— Bem, além de atender os clientes, nos horários de maior movimento, visto um impermeável militar, subo na mesa e canto. Quer ver? (sobe na mesa do café) Gospódi andamy za tsár gossudááár, da-a bú-údjem smjé-jértej boj tsá-ar k rod, slavs’ja! Slava nashe gossarjú! Ura, ura, uraaaa! Ora, que está esperando aí, com esse olho esbugalhado?! Vamos lá, bata palmas! não posso ficar o dia todo esperando...

* * *

2.
O cliente que se acha entendido na burocracia bancária somente porque assiste propagandas de banco.

— Então, qual o empréstimo que você tem para me oferecer, de acordo com o meu perfil?

— (pigarro) Algum talvez; temos empréstimos para todo tipo de idiota, mas idiotas que devem até as calças como você (levanta-se e exibe uma folha corrida de sete páginas em formulário contínuo, erguendo a voz, todos na agência olham) talvez não. Segurança!

* * *

3.
— Faça isso aqui p’ra mim. (joga umas pastas em cima da mesa)

— Não.

— Me respeita, hem! Eu sou teu chefe!

— Problema seu.

— O quê?

— Não respeito ninguém que tenha mau-hálito, seja gordo, com essas camisas a estourar de adiposidades, que seja arrogante e fale babando; fora esse seu bigode horroroso; você nunca pensou em cortá-lo?

— (o chefe levou as mãos aos bigodes) Você acha mesmo…?

— Acho, e se eu fosse você, parava de usar essa loção pós-barba que cheira panetone velho.

— Hum… certo… bem… isso aqui, deixa que eu faço. (tira servil e humildemente os papéis da mesa)

* * *

4.
— Bem, essa dinâmica tem por objectivo estar escolhendo quem deverá estar ocupando a vaga de coordenador externo da nossa empresa. O primeiro teste será de estar completando os desenhos, dou uma folha para cada um.

— Mas a vaga é para vendedor ou desenhista?

— Não é vendedor, é colaborador…

— Olha pra minha cara. Eu sou idiota?

— Não, a questão não é essa, na verdade…

— Sim, para estar aqui, desenhando essas porcariadas devo ser. (os outros candidatos se entreolham abismados). Sabe o que eu penso? Que esse teste é feito por idiotas, para que idiotas o preencham e outros idiotas aplicarem. Saia da minha frente que eu vou prestar um concurso público!

sexta-feira, maio 13

A vingança do acaso

Depois de dias de graves instabilidades mentais, consegui novamente acertar o prumo; ontem, em pleno expediente, avisei a minha chefe e fui até a agência dos Correios, do outro lado da Praça e às três da tarde, dei de cara com uma magnífica tarde de outono, com sol, mas não tórrida; os canteiros estavam com vistosas flores fulvas e tudo recendia a paz; pensei comigo de trazer a minha mesa até a sombra da torre e trabalhar ali, sob a luz diáfana e límpida. Cantarolei Glinka; tudo estava bem, pus a carta na caixa de coleta e voltei ao escritório. À noite, ainda sob essa atmosfera, o ar era fresquíssimo e uma leve brisa agitava os salgueiros e esparrachei-me numa cadeira do café, de pronto, alguns amigos meus já estavam lá. Por bem da pátria e do estômago, resolvi-me de comer algo, uma porcariazinha, uma friturinha; no meio do caminho, uns poucos vinte metros, o caminho começou a alongar-se, alongar-se e de improviso tinha uma carreira de lajes de concreto de quilômetros não tinha fim, a mesa estava longitaníssima e outro tanto faltava para atingir o café; a grama fora substituída pela areia, era um deserto ao ocaso; a certo ponto, vi vultos, grandes vultos: eram carros de guerra egípcios e deles vinha um som: «danziam, fanciulle egizie, le mistiche carole!».

E, não! Estavam vindo na minha direção; como não tive coragem de retornar, saí do caminho, mas os carros, há uns quinhentos metros de distância, também desviaram-se; tropecei numa lembrança e fui de fuça no meio da areia. Quando me levantei, deparei-me com o saiote de linho branco de Aída; eis-me Radamés, enamorado e babão novamente.

quinta-feira, maio 12

Encyclopaedia Estonica


Escultura da igreja de Karja (sec. XIII)

Informação nunca é demais. Um sitío interessante é o da Estonica, enciclopédia virtual sobre a Estônia, sim aquele païsinho báltico que vem sempre acompanhado dos seus vizinhos - sempre se recita dum golpe, Estônia, Letônia e Lituânia. Pois bem, saiba algo mais sobre esse agradável país na Estonica, sítio bilíngüe, em inglês e - se para você, leitor, facilitar, em estoniano.

* * *

Eestimaa - väike, aga tubli! On õnnelikke, kellele sellest piisab. Teised, rahutumad, tahaksid teada, kui tubli ikkagi? Miks? Kas juba kaua? Teid me just olemegi oodanud!

quarta-feira, maio 11

Os soviéticos e o trauma musical

Somente entrando, lendo e ouvindo. Realmente espantoso o damnatio memoriae feito contra as músicas que continham trechos do Deus salve o Tsar; principalmente as peças do Tchajkovskij, nas quais o hino tsarista foi obscenamente substituído pelo Slavsa (Glória), o coro final de Ivan Susenin de Mikhaïl Glinka; não que Glinka seja ruim, ao contrário, mas as músicas não têm afinidade e a substituição é perceptível até para um surdo. Infomações sobre o pogrom musical aqui (em inglês).


D’«A Ilustre Casa de Ramirez», cap. 10.

«Quem o empurrara para a eleição, e para a reconciliação indecente com o Cavaleiro, e para os desgostos daí emanados? O Gouveia, só com leves argúcias, murmuradas por cima do cache-nez, desde a loja do Ramos até à esquina do Correio! Mas quê! Mesmo dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e gravatas! […] O João Gouveia fizera dele um candidato servil. O Manuel Duarte poderia fazer dele um beberrão imundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao pescoço, em vez de uma gravata, uma coleira de couro! Que miséria! E toda via o Homem só vale pela Vontade — só no exercício da Vontade reside o gozo da vida.»

terça-feira, maio 10

Verdades bem postas




O sol já se havia posto e Juan estava afundado numa cadeira do seu café predileto, em Palermo Viejo. O trabalho o deixava aéreo de tanto tédio; largava-se abandonado nas cadeiras até que chegassem seus amigos. Passados alguns minutos assomou-se à mesa Ertzbarrieta e seus óculos de tartaruga; puseram-se a falar do mais e do menos. Mais um pouco, chega Bonomelli e entra na conversa. Conversa vai, conversa vem, Juan levanta-se para pegar mais um café, caminha em direção do caixa e quando esperava que se fosse a pessoa que era atendida então, emparelha consigo uma moça balofa; essa não tem dúvida, quando sai a pessoa que estava no caixa, simplesmente assoma-se ao balcão e faz seu pedido arrogantemente. A caixa olha Juan e pede para que faça o pedido; Juan, por questões de cavalheirismo, aponta novamente para a balofa, «pode atendê-la».

A gorducha simplesmente vira a cara para Juan, que por educação estava a sorrir-lhe; sem um obrigado, nem mesmo um aceno.

Juan foi tomado dum indescritível furor. Fez o pedido e voltou para a mesa e quando se senta novamente à mesa com seus amigos, na mesa ao lado, eis a balofa.

«Desta hoje eu me vingo!», pensou Juan consigo.

Os outros dois rapazes falavam de um programa de rádio muito popular, que descorria sobre fatos estranhos.

— Você perdeu! – berrava Bonomelli para Ertzbarrieta – Puseram no ar um cujo que tocava o hino da União Soviética pelo rabo!

Riam feito cães danados. O assunto rapidamente descambou para atos ou costumes estranhos dos que estavam nas mesas. Juan viu que seria a vingança contra a balofa, que comia sofregamente algo com queijo e melava-se toda.

— Você comeria feijão frio? – disparou Ertzbarrieta.

— Eu tenho um conhecido que come aquelas latas de feijão frias, do jeito que vêm. – complementou Bonomelli.

Olhando para a gordinha, Juan começou:

— Veja, pois eu cá sou doudo por água-de-picles.

Ertzbarrieta e Bonomelli entreolharam-se aterrados e com caretas medonhas, afastaram as cadeiras de Juan.

— Que medo! Que medo! Deus do céu! Água-de-picles?! Aquela salmoura horrível! – berrava vermelho Bonomelli.

A gorducha já olhara de canto de olho. Juan viu que estava dando certo.

— Como horrível?!

— Aquela água nojenta, depois de dias na geladeira… - continuava Bonomelli.

— Não, não… - corrigiu Juan com um tom pedagógico – Realmente se largada na geladeira, fica medonha. Tem de fazer assim: compra-se um vidro de picles, come-se-o todo e vira-se a água duma vez. Eu era capaz de tomar litros!

Bonomelli e Ertzbarrieta gritavam de nojo e de júbilo.

— Você não pode estar a falar sério! – disparou Ertzbarrieta.

— Claro que sim! Tão sério quanto eu gosto de feijão com maionese e pimenta! – arrematou Juan com um sonante tapa sobre a mesa.

A gorducha jogou no chão o que estava comendo e correu com a mão na boca. Juan sorriu de júbilo pelo canto da boca, enquanto seus dois amigos ainda exaltavam-se.

Acredite se quiser

A imaginação dos seres humanos até que é abastança previsível, agora, a dos arquitectos, essa não tem limites (e nem noção do ridículo). Conferides: Arghtetura.

segunda-feira, maio 9

Vitória


09 de maio de 1945 - 09 de maio de 2005
os 60 anos do fim da Segunda Grande Guerra

* * *

Alguns líderes ocidentais reclamaram da transformação da Moscou Russa novamente na Moscou soviética. Besteiras; a história não se apaga. Nem aqui nos esquecemos. Trilha sonora.

sexta-feira, maio 6

Estados demenciais

Depois duma corrida de cem metros, esfalfadíssimo, virou prò lado, atrás da companheira de jogo e arrematou entra gigantescas pausas pra respirar: «Depois de ter corrido de social, só me falta engasgar e começar a falar húngaro».
Se la vida fosse assim bela como tanto propagam, não existiriam empregos, não precisaríamos enfurnar-nos oito horas dentro de lugares fechados, chateando-se ou valendo-se do público para tal. Estaríamos deitados pelos gramados, não haveria as Marginais, nem assassinos, nem presídios. Também não teríamos corações estancados ou em palpitações delirantes. Sarebbe bello. Teríamos autonomias, autonomias internas nossas e Deus nos mandaria manás. Não haveria pessoas histéricas, nem metrôs para nos chocarmos, compressos como atum.
Nem gente que não sabe andar chocando-se como joões-bobos pelas ruas, pelas laterais da Catedral; não teríamos essas melancolias baratas presas entre a bexiga e a genitália. Não teríamos de sofrer por aquilo que não possuímos.
Um professor disse-nos em sala, dia destes, que algo muito próximo da felicidade absoluta é quando se tem deleite com uma música ou com um poema. De-improviso, percebi a razão abissal do dito.
Mas nada nos impede que corramos por calçadas desertas, gritemos em húngaro, discutamos em italiano, urinemos em basco e comamos em finlandês. É tudo uma simplérrima questão de aceitar, de subir ao telhado e falar com as telhas da cumeeira ou trocar filosofias vegetais com um pé de couve-repolhuda, ou com o chuchu que se dependura no muro e lembra a silhueta de Nietszche.
Ou nada disso, somente um sono absurdo que faz coçar os olhos e obriga-nos a comprar gingobiloba. Se eu fosse o presidente da República, por exemplo, se me batesse o sono, mandaria o Ministro da Ciência e Tecnologia fazer um pronunciamento em rede nacional vestido de colhinho.
Também há a possibilidade de usar interjeições esquisitas, que semelham-se a outras línguas, mas não querem dizer nada.
Ou talvez não.

quinta-feira, maio 5

Terceira praga burocrático-administrativa

Fuxicos e rumores

Coisa comezinha e quotidiana nos ambientes de trabalho que têm mais de três pessoas, é o rumor e os «comentários paralelos». Qualquer ordem mal-interpretada ou comentário nebuloso ou obscuro entra necessariamente para a ordem do dia e torna-se assunto principal. Hodiernamente, os comentários que mais têm repercussão são as demissões de fim-de-mês. Se o chefe resmunga do filtro que não mais gela a água e diz a alguém que esteja próximo: «este vai embora», basta que essa frase tenha sido dita próximo de alguma baia (divisória) habitada para que logo os boatos de demissão, que vão demitir alguém; vai tomando tamanhas proporções a ponto de o último do telefone-sem-fio ser notificado de uma demissão em massa, vão fechar o sector e outras coisas. Ficam todos em polvorosa e pouco se trabalha, aguardando a ceifa, gerando ataques histéricos (principalmente entre as mulheres) e murros nas mesas (mais os homens).

No sector público, onde mesmo que sejam hoje a maioria dos funcionários contratados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o que tira a tão almejada estabilidade do estatuário; mesmo com esse porém legal, é notório que no sector público, somente se é demitido depois de inúmeros delitos ou omissões gravíssimos em série (popularmente conhecidos por cagadas), esse morbo demonstra-se em formas diversas, como exacerbação do abuso de poder pelos superiores, e maior controle da vida alheia, principalmente dos funcionários de mesmo nível, mostrando sua mesquinhez e vileza; nos sectores burocráticos, tramam e confabulam uns contra os outros no pior estilo do apunhalar, entremeados de papéis, ofícios; grampeadores e furadores podem tornar-se armas mortais na mão de funcionário atacados do furor provocado por essas pragas.

Veja também:
Segunda praga burocrático-administrativa (os duendes de escritório)
Primeira praga burocrático-administrativa (grampos)

quarta-feira, maio 4

O poder da Literatura

O nosso professor de Literatura Italiano contou-nos simpática anedota literária, a qual não pude resistir de transcrevê-la; evidentemente, ao meu modo.

Ariosto e a Garfagnana

Ludovico Ariosto, autor do Orlando Furioso, teve na sua vida inúmeras desventuras e ingratidões; servidor do Cardeal Ippolito d’Este, acabou até limpando cavalos; Cardeal extremamente ingrato, inclusive no juízo que fez sobre o Orlando; mesmo assim, Ariosto manteve a dédica ao Cardeal nas três edições (sendo que qualquer bom cristão a teria tirado). Quando o Cardeal faleceu, acabou por prestar seus serviços ao Duque de Ferrara, Alfonso I d’Este, irmão do funto Cardeal.

O Duque, não se sabe se por desprezo às letras ou por puro maquiavelismo barato (leia-se isso no pior sentido possível), nomeou Ariosto governador na Garfagnana. Um vero presente-de-grego; a Garfagnana era uma região simplesmente infestada de bandidos e bandoleiros de toda sorta; tanto que nem a polícia ducal tentava de lá pôr os pés.

Pouco antes de chegar ao vilarejo, a diligência do novo Governador foi presa de assalto pelos bandoleiros; fizeram descer todos.

— Governador, hein? Aqui mandamos nós! E tu és já um homem morto; passa-nos tudo!

E os salteadores foram esvaziando a carruagem até que, a certo ponto, encontraram uma edição encadernada do Orlando Furioso.

— Mas como?! Tu lês o Orlando Furioso?! – espantou-se o chefe do bando. – Todos somos ávidos leitores…! Conheces o autor? Tens cara de cortesão; deves conhecê-lo!

Ariosto ficou um pouco lívido.

— Em suma… é… o autor sou eu; o fiz eu…

— Tu? Homens! Botai tudo de volta no carro de messer Ludovico… - encabulou-se um pouco.

— Que chefe?! Enlouqueceste? – levantou a cabeça um dos bandoleiros do alto da carruagem.

— Estróina! Esse senhor, Governador da Garfagnana é messer Ludovico Ariosto!

Param todos.

— Queira desculpar o incômodo, Excelência. – voltou-se o chefe – Pensávamos que fosse mais um desses pacóvios inertes que nos manda o pulha do Duque; mas o senhor não; grande homem ilustrado e agora, Governador. Vamos; o escoltaremos até a sede do Governo Civil. – deu um sonoro tabefe nas costas de messer Ariosto.

E foi assim que Ludovico Ariosto salvou-se a vida pela Literatura; e foi conduzido até o vilarejo em triunfo. O povo aglomerou-se na praça.

— Vede! Vede! O autor do Orlando é nosso Governador!

Ovações estrondosíssimas e berros de gáudio acolheram o novo Governador Civil da Garfagnana, cujo governo pacificador e conciliador entrou para os anais da política italiana; um território onde o poder constituído raramente entrava e foi totalmente cambiado.

terça-feira, maio 3

Habemus fotoblogum

Nuntio vobis, magnum gaudium: habemus fotoblogum. Brutissimum ac inutilissimum fotoblogum, fotoblogum Nuntiovobis.

Escritos enjeitados

Burocracia e jardinagem

Há plantas que são burocráticas. É o caso dessa folhagem verde genérica que tem em todo jardim mantido pelo Público Poder (seja administração directa, indirecta, autarquias ou economias-mistas); não faço a menor idéia do seu nome, do seu binômio latino então, nem sombra. Ela dá um aspecto fofo e macio aos canteiros, uma certa bonomia estúpida; sempre plantada e disposta geometricamente. Suas folhas grandes e brilhosas parecem untadas de óleo, engorduradas levemente. Já vi mendigos deitados nelas, como se fossem uma grande cama.

Definitivamente é uma planta burocrática, sobrevive em ambientes com pouca luz ou ventilação, daí sua existência também em estúpidas jardineiras (de concreto ou de amianto) e estreitos jardins internos, circulando as notórias estátuas cujos nomes desconhecemos. Ou por ignorância ou porque a aplaca foi levada por algum espírito-de-porco.

Avícola, mercearia e livraria ltda.

Vivo atrás de livros, ou eles que me perseguem no inconsciente. Isso pouco importa agora; importa o fato de eu estar novamente atrás de determinada obra literária. Precisava ler A Ilustre Casa de Ramires, do Eça de Queiroz. Aproveitando a ida às Galerias da Aricanduva para comprar umas calças e umas camisas, fui também à livraria.

Livrarias de shoppings suburbanos costumam ser não muito diversas dum castelo dos horrores; logo à entrada, põe-se o que mais vende, ou seja, os famigerados livros de auto-ajuda, misticismo barato, má literatura e misticismo com ares literários. Essa indigesta recolha geralmente forma uma barreira que me é intransponível; mas eu precisava do livro, tive de passar pelas infames prateleiras, veja-se bem, não sem esforço e não sem que me doesse a vista. Passado o báratro, esbarrei no vendedor (esbarrei porque nos últimos centímetros tive de fechar os olhos); ingauei-lhe:

— Bom-dia; o que você tem do Eça?

— Essa…? É o nome do autor ou da obra?

Fiquei um pouco reticente. Certo, no nosso país, é pedir muito que todos tenham lido Eça de Queiroz.

— Do autor…

— Qual obra?

— Preciso d’A Ilustre Casa de Ramires.

— Vamos até o terminal ver se tem.

Acompanhei-o até o fundo da loja, tropeçando em livros de feng-shui aplicado às finanças e florais de Bach aplicados aos laboratórios de Física Nuclear. Chegados ao terminal, o rapazola iniciou a digitar, e eu de escanteio vendo. Ao invés de escrever «ilustre», saltou-me aos olhos um «ilustri», com «i».

— Não. – intervi – ilustre é com «e».

— Ah, tudo bem.

Recomeçou a digitar. Saiu um «elustri».

— Não; o «i» do começo estava certo, o «e» é no final.

— Ah, tá.

Depois de um rápido processamento, o terminal indicou que a obra não estava disponível naquela loja.

— Mas tem na outra… - disse o vendedor.

— Também – grunhi entre os dentes – quem será que lê Eça nesse posto infecto?

— Como?

— Nada, nada; estou resmungando cos meus botões. Certo, vou dar um pulinho na outra loja. Afinal, para que ler Eça nesse lugar não é? Bom-dia.

— É… bom-dia; mas na outra loja tem, viu?

— Pode deixar – respondi com voz grave e indo embora com as mãos nas costas – e caderno de ortografia, você tem?

— Não; talvez na papelaria ao lado… - apontou com o braço.

— Mas dicionário tem, não é?

— Tem sim. – virou a cabeça em direcção a uma estante.

— É uma obra de consulta, viu? É bom para consultar; ajuda muito…

— Sim, eu sei. O senhor quer ver algum?

— Não, não. Deixa pr’outra hora; preciso do livro.

— Boa sorte, então.

— Pra você também; vai precisar.

Pensamentos a granel

Não se deve confiar em pessoas com documentos oficiais cujas fotos apresentem faces sorridentes.