terça-feira, maio 17

O bêbado

(um homem, do alto de um sobrado, sentado no beiral, de madrugada, fumando com uma garrafa de bagaceira do lado; vários minutos em silêncio, de-improviso, começa a falar)

— O vazio… o vazio!; um correr cego e insensível, ao gosto do balouçar da procela. O nada horríssono, o choro sem consolo; o nada, o nada! Nada cheira, nada se move mais, move-se só aquilo que deveria ficar parado, o vento só vem atrapalhar. (ouve-se o choro duma criança, instantes reflexivos). Veja, chora e ainda não sabe o que lhe espera. O nada, trinta e cinco anos de labor inútil, vendendo barato o seu tempo, barato, praticamente de graça, pois o tempo, ao contrário do dinheiro, é irrecuperável. E gente mesquinha; e afinal, qual foi o infeliz, o primeiro macaco consciente que pôs o trabalho como valor? De seguir as ordens de chefes que não raciocinam e querem tudo para ontem, num vórtice de desordem; o desprezo profundo pelas Humanidades e endeusamento das Ciências Mercantis e Contábeis, uma geração de vendedores analfabetos; de estudantes que passam de ano empurrados pelo Sistema de educação! Não são capazes de ler um folheto. (toma um trago da garrafa)

— (de uma janela acesa, sai um homem em robe-de-chambre) Vai dormi’, vagabundo! Se você não tem nada p’ra faze’ amanhã-de-manhã, deix’as pessoas de bem dormi’!

— Lembrou-me uma vez, uma chefe minha, acho que foi quando trabalhei na contagem de ladrilhos, contou um dia de manhã, que havia recebido um trote telefônico no meio da madrugada de domingo para segunda-feira e a pessoa do outro lado lhe chamara idiota, e ela, pobre-coitada, toda benevolente (ca voz em falsete): «tenho realmente muita dó dessa pessoa, certamente não tem um emprego, nada p’ra fazer na segunda de manhã; perdi até o sono de dó». Tanta benevolência mercantilista,… juro,… quase me fez… vomitar. (deita-se nas telhas e passa a observar o céu). Tantas coisas que se passam lá-em-cima, galáxias gigantescas, maiores do que qualquer coisa que o homem possa ver, mistérios infinitos, suficientes para consumir vidas e vidas a pensar neles; e aqui mesmo, tanto para saber de mais consistente; e as pessoas perdidas nessas vidinhas; essas vidinhas de dinheirinhos, de mesquinhariazinhas, de pensar em estratégias de vendas; como essa palavra me enoja!

— (de uma janela fechada) Antonces toma um sar-de-frutas e vai dormi’!

— Civilização mercantilista! De banquinhos! Banquinhos ridículos! Cofrinhos crescidos! Se Rômulo e Remo e os gregos desconfiassem no miasma que resultaria de todos os seus esforços, do dilatamento das fronteiras a ferro e sangue, certamente não se teriam dado ao trabalho… (suspiro profundo) e há ainda tantas coisas belas, tardes de primavera… tépidas e cálidas tardes de primavera…

Adormeceu. Como era no inverno; acordou com uma terrível pneumonia. Trancou-se no quarto durante duas semanas, sem se alimentar direito, debilitou-se e morreu. A polícia achou o cadáver, já semidecomposto com um sorriso fino ainda preso entre os lábios.

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

"Não se assuste, pessoa
Se eu lhe disser que a vida é boa
Enquanto eles se batem
Dê um rolê e você vai ouvir
Apenas quem já dizia:
Eu não tenho nada
Antes de você ser, eu sou
Eu sou
Eu sou o amor da cabeça aos pés"

quarta-feira, maio 18, 2005 12:25:00 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Hontem o Barom Hohenzöllern Von Hohenstäufen veiu-me preguntar que cousa podria dar como regalo pellos annos de Sa Alteza. Respondi-lhe: dá-lhe o que mais gosta - hífenes.

quarta-feira, maio 18, 2005 10:15:00 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home