terça-feira, maio 3

Escritos enjeitados

Burocracia e jardinagem

Há plantas que são burocráticas. É o caso dessa folhagem verde genérica que tem em todo jardim mantido pelo Público Poder (seja administração directa, indirecta, autarquias ou economias-mistas); não faço a menor idéia do seu nome, do seu binômio latino então, nem sombra. Ela dá um aspecto fofo e macio aos canteiros, uma certa bonomia estúpida; sempre plantada e disposta geometricamente. Suas folhas grandes e brilhosas parecem untadas de óleo, engorduradas levemente. Já vi mendigos deitados nelas, como se fossem uma grande cama.

Definitivamente é uma planta burocrática, sobrevive em ambientes com pouca luz ou ventilação, daí sua existência também em estúpidas jardineiras (de concreto ou de amianto) e estreitos jardins internos, circulando as notórias estátuas cujos nomes desconhecemos. Ou por ignorância ou porque a aplaca foi levada por algum espírito-de-porco.

Avícola, mercearia e livraria ltda.

Vivo atrás de livros, ou eles que me perseguem no inconsciente. Isso pouco importa agora; importa o fato de eu estar novamente atrás de determinada obra literária. Precisava ler A Ilustre Casa de Ramires, do Eça de Queiroz. Aproveitando a ida às Galerias da Aricanduva para comprar umas calças e umas camisas, fui também à livraria.

Livrarias de shoppings suburbanos costumam ser não muito diversas dum castelo dos horrores; logo à entrada, põe-se o que mais vende, ou seja, os famigerados livros de auto-ajuda, misticismo barato, má literatura e misticismo com ares literários. Essa indigesta recolha geralmente forma uma barreira que me é intransponível; mas eu precisava do livro, tive de passar pelas infames prateleiras, veja-se bem, não sem esforço e não sem que me doesse a vista. Passado o báratro, esbarrei no vendedor (esbarrei porque nos últimos centímetros tive de fechar os olhos); ingauei-lhe:

— Bom-dia; o que você tem do Eça?

— Essa…? É o nome do autor ou da obra?

Fiquei um pouco reticente. Certo, no nosso país, é pedir muito que todos tenham lido Eça de Queiroz.

— Do autor…

— Qual obra?

— Preciso d’A Ilustre Casa de Ramires.

— Vamos até o terminal ver se tem.

Acompanhei-o até o fundo da loja, tropeçando em livros de feng-shui aplicado às finanças e florais de Bach aplicados aos laboratórios de Física Nuclear. Chegados ao terminal, o rapazola iniciou a digitar, e eu de escanteio vendo. Ao invés de escrever «ilustre», saltou-me aos olhos um «ilustri», com «i».

— Não. – intervi – ilustre é com «e».

— Ah, tudo bem.

Recomeçou a digitar. Saiu um «elustri».

— Não; o «i» do começo estava certo, o «e» é no final.

— Ah, tá.

Depois de um rápido processamento, o terminal indicou que a obra não estava disponível naquela loja.

— Mas tem na outra… - disse o vendedor.

— Também – grunhi entre os dentes – quem será que lê Eça nesse posto infecto?

— Como?

— Nada, nada; estou resmungando cos meus botões. Certo, vou dar um pulinho na outra loja. Afinal, para que ler Eça nesse lugar não é? Bom-dia.

— É… bom-dia; mas na outra loja tem, viu?

— Pode deixar – respondi com voz grave e indo embora com as mãos nas costas – e caderno de ortografia, você tem?

— Não; talvez na papelaria ao lado… - apontou com o braço.

— Mas dicionário tem, não é?

— Tem sim. – virou a cabeça em direcção a uma estante.

— É uma obra de consulta, viu? É bom para consultar; ajuda muito…

— Sim, eu sei. O senhor quer ver algum?

— Não, não. Deixa pr’outra hora; preciso do livro.

— Boa sorte, então.

— Pra você também; vai precisar.

Pensamentos a granel

Não se deve confiar em pessoas com documentos oficiais cujas fotos apresentem faces sorridentes.

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