Realmente não entra na minha cabeça essa vacas de concreto (são de concreto? pelo menos o suporte é) espalhadas pela Paulópole. Todo dia há uma no meu caminho, no Pátio do Colégio, bem defronte ao ponto de ônibus, ao lado da banca de jornal. Essa do Pátio tem uns motivos rupestres.
No começo, pouco me importava da vaca, mas depois duns dias, parece que ela tem se deslocado, cada dia mais perto do prédio do Primeiro Tribunal de Alçada Cívil. O pétreo bovino está obrigatoriamente na visão de quem está no ponto; se você se distrai e ao invés de conservar os olhos fixos na praça da Sé, de onde vêm os ônibus, primeiro seu olhar recai sobre a banca de jornais e conseqüentemente, deslocando-se a vista para a esquerda, cai o olhar sobre a infame vaca de concreto. Qual é a função dela? Como tudo de arte moderna, provavelmente nenhuma, não informa, não diz nada; os desenhos rupestres, talvez alguns os identifiquem como tal, tendo em conta as pessoas que pegam ônibus ali tudo dia, sempre os mesmos. Tem um moço quase sem queixo que lembra o Noel Rosa, uma moça que sempre o conhece, que tem uma face assaz abrutalhada, como um aborígene canibal. Sinceramente, tenho medo de que ela me morda um dia.
Pois bem, as pessoas que pegam os ônibus no Pátio do Colégio não diferem muito do rebanho de concreto, pois se mexem; talvez sejam pedras falantes, não sentem o que está ao redor e conversam fatuidades que se esfumam no ar como vapor.
Mas pouco me importa quem pega ônibus comigo, pois estou falando da vaca de concreto, daquela estúpida vaca de concreto e seu obsceno úbere petrificado, pintada como se fora pedra e aplicados sobre, os desenhos que simulam arte rupestre. Como já vinha dizendo, no começo, nos primeiros dias, pouco me importava. «Uma vaca de concreto! Que asnidade!». Mas passados uns dias, como eu já disse, a vaca estava cada vez mais deslocada, em direção ao tribunal. Seria uma vaca com pretensões a advogada?
E afinal, o que significa aquela vaca, santo-deus? Será uma conspiração dos indianos? Certamente não; païses que têm bomba atômica não precisam dar-se nuances tão ridículos. Mas parece que, a inutilidade da vaca não foi precebida só por mim. Terça-feira passada vi um japonês tirando algumas fotografias com o celular; na quinta, uma feliz mãe pôs seu feliz rebento sobre a vaca. Lembrei, com um sutil sorriso da minha vó que dizia montar nas vacas quando era pequena, coisa que não se pode fazer. Mas aquilo era uma vaca de concreto, ou seja, dali não sai leite e nem ficará desconjuntada pelo peso nas costas. A criança pareceu apreciar a vista de cima do insólito ruminante, tanto que para arrancá-la de lá, a mãe teve um tremendo trabalho.
Mais uns dias, eu subia de-manhã pela General Carneiro, como todo dia útil, para pegar o coletivo no Pátio do Colégio. No no alto da ladeira, giro a esquerda e dou de cara com a já consueta vaca, mas no seu dorso havia algo não tão consueto - bem, se estivesse desmontado da vaca, caïdo por um canto, sentado com a mão estendida pedido esmola, tudo bem, seria normal. Sim, havia um mendigo, sujo; não, sujo é pouco: imundo, barbado, cheio de folhas, grãos de sabe-lá-deus-o-quê na barba, trajando igualmente imundos um chapéu panamá, um surrado e puïdo paletó, calça de risca e pés descalços cobertos de crostas pretas. Havia ao redor uns curiosos (como era de se esperar), o mendigo se balouçava para frente e para trás, como se realmente cavalgasse. Cheguei mais perto e me pus junto dos curiosos.
- Valha-me Deus! Mil infernos ardem! Avante, adiante, tropas!
Olhava para trás, como se houvesse todo um exército atrás.
- Onde está o banana do Conde D’Eu?! Ele pensa que vai se livrar assim, só porque é genro do Imperador? Nada disso!
Da Praça da Sé vinham correndo três policiais militares. O mendigo continuava em cima da vaca, solenemente parou para observar a assistência, com olhar soberbo e cara erguida, começou a recitar:
- Humaitá... Cerro Corá... Riachuelo! Viva o Exército Imperial!
A maioria das pessoas ao redor nem sabiam do que falava o andrajoso, mas se riram da referência ao Império. Começou a remexer-se loucamente do alto da vaca e tirou de um cabo de vassoura que trazia atado à cintura, brandindo-o contra a assistência, que abriu espaço.
- Paraguaios, paraguaios malditos! Que exército porco que nem sapatos tem!
Os policiais agarraram o cavaleiro (ou o vaqueiro, o que quer que seja) e o desmontaram, pondo-o ainda sentado no chão.
- Como ousam! Biltres, pérfidos, traïdores!
- Fica quïetinho aí, meu. - respondeu calmamente o policial.
- Vocês sabem quem sou eu, por acaso?
Os policiais entreolharam-se; o mesmo fez a assistência que estava muda.
- Vocês por acaso nunca passaram pela Praça Princesa Isabel? Tem uma estátua minha imensa lá! Eu libertei vocês do Solano, suas bestas.
- Solano? Que Solano? - perguntou alguém da assistência.
Mas o Duque dos andrajos já havia se levantado e agora pôs-se de corrida atrás de um trólebus, berrando.
- Solano! Biltre, volte aqui! Você não conseguirá escapar de mim e do fio da minha espada. Tenho os cachorros do exército todo pra alimentar com as suas tripas! Solanoooo...
E sumiu em direção do largo São Bento, sempre berrando pela cabeça de Solano López e somente eu fiquei parado olhando, os policiais já enfiavam pela rua do Tesouro e os curiosos tinham cada um tomado seu rumo.
Grandes ditos: «Militares não têm espírito esportivo.» João Goulart, presidente deposto.
Estrebaria Nacional: patentes, títulos nobiliárquicos, ex-presidentes, amadoras, Guerra do Paraguai, Duque de Caxias, Cowparade, centro de São Paulo, Mosteiro de São Bento, pomada de peixe-boi da Amazônia, Visconde de Taunay, golpe militar, Zé Celso.