338. Diário de viagem de Belgrano
Belgrano em São Paulo
Contou que, assim como se vê a morte nas gravuras, ela não foge muito em aspecto. «Só que não deixa que lhe vejam o rosto», complementou Belgrano. Ele afirma que o rosto de caveira que atribuimos à morte é inveção nossa, e a eles, pingüins, lhes é permitido ver seu rosto. «No estreito ou na península, ela vem montada num leão-marinho, sobre as águas - que pra nós, é a própria idéia da morte, entende? - com a mesma capa preta e a foice de cabo longo. A única diferença é que pra nós, ela aparece com a cabeça descoberta... porque, com a beleza do seu rosto e dos seus cabelos, faz os pingüins todos pararem na praia, estupefatos... aí vem os leões-marinhos e... bem, você já sabe o resto.»
Belgrano continuou relatando que em São Paulo, em poucos dias da sua estava, viu a morte em diversos lugares. Uma vez, sentada sobre o semáforo de um perigoso cruzamento e sem capuz, deixando os longos cabelos negros e ondulados esvoaçando no vento frio de inverno; outra vez, no metrô, na beira da plataforma sentido Corinthians-Itaquera da estação Sé, um passo depois da faixa amarela, deixando os cabelos voarem com o ar empurrado pelo vagão para dentro da estação e raspando a lâmina da foice na pedra da beira da plataforma, melancolicamente. «Sorte de vocês que não a vêem... as mortes seriam em dobro». E Belgrano diz que ela anda por aí, no encalço dos corajosos e de quem arrisca demais; na porta dos hospitais, atrás dos já feridos pela sua gadanha, mas que precisam de um segundo golpe, «de misericórdia, por assim dizer».
Voltamos aos temas das suas viagens. Disse que passou em São Paulo só para me visitar: «Não gosto muito de São Paulo, é uma cidade feita pela classe média e para a classe média... não tem raízes e não se pensa duas vezes em trocar a história pelo dinheiro». Belgrano diz que pretende conhecer o mundo. Isso é, se a morte dos cabelos ondulados e esvoaçantes o deixar fazê-lo.