As mãos e extratos da mediocridade
As mãos
O concerto de Brandemburgo n.º 1 é uma verdadeira delícia; é magnânimo, é envolvente, é extremamente prazeiroso ouvi-lo. Ouvindo-o, imagino Bach, sentado a uma escrivaninha sob a luz amarelada duma lanterna a óleo, numa noite chuvosa em Lípsia. A sua mão, ligeiramente obesa alternando-se entre o papel pautado e o tinteiro; ninguém em volta. O barulho da chuva, o ladrar dum cão ao longe e o ruminar cerebral que provinha de si sobre o papel. Que pensar, que das mesmas mãos humanas - não as de Bach, propriamente, mas as dos seres humanos normais -, mãos que tanto podem dedicar-se a escrever uma belíssima obra-prima musical, um poema que entrará para a história, quanto dedicar-se a trabalhos altamente aviltantes quanto assinar contratos de empréstimo ou gesticular ao telefone.
Assim é a minha mão: ela assina contratos de empréstimo, empréstimo para gente aviltante, cerca de uma centena de rubricas e assinaturas por dia; a minha mão serve para puxar o telefone e atendê-lo e gesticular enquanto fala. A minha mão serve para indicar onde está a garrafa témica, onde se escondem os copos do bebedouro; onde estão as guias de contabilização. Serve ainda para preencher as mesmas guias. Serve para apoiar a cabeça nos momentos de desespero, para segurar o queixo nos momentos de pretensa e fingida atenção. Serve para reger a orquestra de maritacas que se acumulam no parapeito da janela.
Servem para pôr o bilhete no bloqueio do metrô, cumprimentar os amigos e os inimigos; para dar acenos esnobes; para ficarem quietas nos bolsos ou ficar remexendo as moedas miúdas dentro deles; para dar sinal para o ônibus, para dar corda no relógio da sala; segurar o cortador de grama; folhear o jornal e ver as barbaridades de todo-santo-dia.
As vezes elas tremem e viram-se para mim desconsoladas. Queriam pular no pescoço daquela correntista inconveniente. «Vamos lá, seu excomungado», elas me segredam, «pega a placa de tarifas e bate-lhe até que sua cabeça parta-se...». Não! Mãos más. Fostes feitas para serem gentis, para afagar a cabeça das crianças, dos gatos, dos cães; para deslizar sobre as mesas delicadamente. Mas elas não desistem, são rudes violentas; embora pequenas. Querem vingar-se, não aceitam afrontas; agarram-se ao balaústre do metrô ferozmente: «Aqui ficamos nós!». Toda raiva concentrada em mim, tem escape pelas minhas mãos: papéis, lápis, latas de refrigerante redizem-se rapidamente a sucata inútil sob o seu jugo tirânico. Quando nada há a destruir, apertam-se uma a outra. Como eu próprio geralmente comporto-me: aperto-me em mim mesmo.
Um dia, estas minhas mãos revoltar-se-ão contra seu mestre e tutor, primeiro em paralisação geral; depois atentarão contra a sua vida, jogando-se furiosamente contra o pescoço ou armando-se de qualquer faca. As minhas mãos tomando o papel que caberia à sociedade, de extirpar os entes que não lhe são convenientes ou lhe são subversivos; as únicas coisas que não me era hostis, um dia virão sim, contra mim, em conluio com o resto.
Assim é a minha mão: ela assina contratos de empréstimo, empréstimo para gente aviltante, cerca de uma centena de rubricas e assinaturas por dia; a minha mão serve para puxar o telefone e atendê-lo e gesticular enquanto fala. A minha mão serve para indicar onde está a garrafa témica, onde se escondem os copos do bebedouro; onde estão as guias de contabilização. Serve ainda para preencher as mesmas guias. Serve para apoiar a cabeça nos momentos de desespero, para segurar o queixo nos momentos de pretensa e fingida atenção. Serve para reger a orquestra de maritacas que se acumulam no parapeito da janela.
Servem para pôr o bilhete no bloqueio do metrô, cumprimentar os amigos e os inimigos; para dar acenos esnobes; para ficarem quietas nos bolsos ou ficar remexendo as moedas miúdas dentro deles; para dar sinal para o ônibus, para dar corda no relógio da sala; segurar o cortador de grama; folhear o jornal e ver as barbaridades de todo-santo-dia.
As vezes elas tremem e viram-se para mim desconsoladas. Queriam pular no pescoço daquela correntista inconveniente. «Vamos lá, seu excomungado», elas me segredam, «pega a placa de tarifas e bate-lhe até que sua cabeça parta-se...». Não! Mãos más. Fostes feitas para serem gentis, para afagar a cabeça das crianças, dos gatos, dos cães; para deslizar sobre as mesas delicadamente. Mas elas não desistem, são rudes violentas; embora pequenas. Querem vingar-se, não aceitam afrontas; agarram-se ao balaústre do metrô ferozmente: «Aqui ficamos nós!». Toda raiva concentrada em mim, tem escape pelas minhas mãos: papéis, lápis, latas de refrigerante redizem-se rapidamente a sucata inútil sob o seu jugo tirânico. Quando nada há a destruir, apertam-se uma a outra. Como eu próprio geralmente comporto-me: aperto-me em mim mesmo.
Um dia, estas minhas mãos revoltar-se-ão contra seu mestre e tutor, primeiro em paralisação geral; depois atentarão contra a sua vida, jogando-se furiosamente contra o pescoço ou armando-se de qualquer faca. As minhas mãos tomando o papel que caberia à sociedade, de extirpar os entes que não lhe são convenientes ou lhe são subversivos; as únicas coisas que não me era hostis, um dia virão sim, contra mim, em conluio com o resto.
Extratos da mediocridade
Extratos dos ridículos e extensos diários de um ser obtuso. Manteve-se a grafia original e os trechos referem-se ao ano da graça de 2004.
5 de maio - Durmo revolucionário e acordo desertor.
8 de maio - Que sou eu, senão um balde de excremento?
18 de maio - A semana começou com Tylenol (para a cabeça) e água tônica (para o estômago).
1.º de junho - O Elefante cartaginês - foi exatamente o que representei no primeiro dia de banco.
11 de junho - Gostaria muito de sumir, simplesmente como se apaga uma luminária num quarto escuro.
16 de junho - Dinamite! Eu quero dinamite! Talvez eu desacate um desses policiais do Exército que andam por aí por causa da Conferência da ONU só para ganhar uma rajada de metralhadora.
21 de junho - Hoje foi um dia mais «controlado». De manhã, no metrô, comprei uma cópia do Código Civil; e lá pelo artigo mil-duzentos-oitenta e tralalá, há no texto uma questão sobre frutas que caem no terreno vizinho.
23 de junho - Nossos próprios ossos se fora do lugar e quebrados, podem nos traspassar e ferir. Que dirá dos nossos pensamentos e outras sensações trascinantes?
4 de julho - Tem já dez anos o plano econômico que deu continuidade à desordem social.
20 de agosto - [...] Ontem pela manhã, assim que se abriram as portas do banco, entrou uma senhora para refazer um empréstimo. Dona Maria Cecília. Visto que mais nada cabia em sua renda, Hélia afirmou-lhe que não era possível refazer. Então a mulher começou humildemente a tecer seus problemas: o marido desempregado, a mãe de noventa-e-quatro anos que sofrera um derrame; e desatou a chorar sofregamente.
25 de agosto - [...] Sonho muito pouco; às vezes que me ocorrem no ano são contáveis pelos dedos de u’a mão e são relativamente fragmentários.
4 de setembro - [...] Aprendi que, pela lei da mínima probabilidade, devemos sim jogar na loteria (comentário sobre certo curso de vendas que tive de fazer).
12 de setembro - E no silêncio da noite, sob as cortinas do breu e da temperatura baixa ao improviso, alguém martela u’as madeiras, o rumor característico da madeira em choque é inconfundível.
15 de setembro - [...] A única coisa produzida pelo homem que é igualitária e realmente democrática - nada de eleições, escrutínios ou qualquer outro tipo de orgia democrática - é a bomba atômica. [...] igualitária tal qual queriam os comunistas/socialistas.
19 de setembro - Não preciso ver filmes americanos para saber que são ruins.
28 de setembro - [...] citei caracterizando a expressão «vontade férrea» pelo impulso de levantar e ir trabalhar, mesmo achando tudo uma grande merda. A expressão certa é «covardia férrea», talvez nem férrea, mas de platina.
8 de outubro - A música do gramofone continua a dilatar-se pelas ruas e vai fazendo parar quem a escuta. O operário largou a britadeira e olhou para o céu tépido de primavera. De onde vem a música? Como uma vaga, ela vem ocupando os espaços. De improviso, as pessoas param e tem na cara um ar nostálgico de bons tempos. A melodia continua a sua progressão, extravazou a cidade e vai rapidamente dilatando-se pelas veredas, campos cultivados, pastos, sertões e florestas. Tudo envolve-se numa calma cálica. As pessoas não correm mais nas estações de metrô e quando se esbarram, desculpam-se com cordiais reverências. O vento trouxe a música até o campo de batalha; o barulho da última bomba cessou de ecoar, os soldados saltaram das trincheirase abraçaram-se. A música era o sinal que o fim do mundo seria dali alguns instantes. E assim foi.
10 de outubro - [...] Alguns choravam silenciosamente. Cantaram pela última vez o melancólico hino nacional que lembrava quase um lamento; por fim, sentaram-se do lado das covas e foi uma questão de horas para que estivessem todos mortos. Os chacais e abutres não apareceram, e quase no fim do inverno, uma brigada do país vizinho veio enterrá-los.
17 de outubro - [...] Roma ardeu. Adreu tudo; templos, casas, ínsulas, celeiros. Mas quem foi o estúpido que jogou essa bituca aqui?!
26 de outubro - Porque? Casa, comida, roupa lavada, pátria, deus, rei, Antônio Cândido, dodecafonismo, chefe, metrô, ônibus, elevador, gente em profusão? Porque?
16 de novembro - [...] Choveu boa parte do dia, na verdade, durante todo o dia. As ruas pareciam sulcos de um imenso disco; e se os carros fossem providos de agulhas, escutar-se-ia pôlos seus pára-choques uma melancólica romança.
3 de dezembro - Neste interlúdio, o clima mudou várias vezes, houve dias de calor siciliano, calor insuportável que penetra até à alma, um calor siciliano que transforma as camisas fétidas como as de um estivador e meias mais putrefeitas que carniça, de fazer vomitar um urubu de louça.
4 Comentários:
Cara... Uma obra de arte... Simplesmente. Dê mais vazão ao teu lado surreal, cara. Aquilo q vc me falou de burocrata subversivo. Vc tem talento, não deixe ninguém dizer o contrário. Só precisa lapidá-lo e ter coragem para ir mais longe, p.ex., faça a história em q suas mão se revoltam contra vc e contra o mundo, o embate final. Meu, sem medo de dizer, vc é o mais Kafka q eu já li em língua portuguesa. Seu enorme puto! Leia Bernardo Soares!!!!!!!!!!!
Ilmo. Sr. Conde,
a culpa é do maldito polegar opositor, que desde eras imemoriais ergue e destrói coisas belas. Façamos, então, a nossa parte. Embora de outubro a outubro, nos perguntemos 'por quê?'.
aceito o empréstimo do korsakov.
a propósito, encontrei algumas moedinhas que certamente o interessarão.
amplexos,
b
...
pois é, do próprio. Referência óbvia, eu sei, mas esse documentário é, por assim dizer, 'do meu tempo'. Lembra? "telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor bla bla bla". É bem por aí.
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