Celulares e arrebóis
O ano moribundo está já a abandonar seus últimos dias. Também-eu gostaria de abandonar um saco de coisas, reminiscências e lamúrias, mas o passado me adere como a limalha no ímã. Até hoje não deixei o 1999, sou um típico animal do século XX. Ajustei-me em parte às novas tecnologias, mas aïnda continuo avesso a outras tantas, como a telefonia celular, por exemplo. E além de não gostar nem um pouco dos malditos telefonezinhos tenho espamos de riso, quando no metrô, algum palúrdio, a dizer asnidades pelo aparelho declara: «fala rápido que vai entra’ no túnel». Geralmente o tempo não é suficiente; o efeito é aïnda mais engraçado quando o titular do aparelho o pragueja e o maldiz. Uma vez, vi um homem na rua, num acesso de raiva lançar o aparelho contra a calçada. Não é necessário que se diga que o magnânimo e onipotente telefone reduziu-se a uns cacos sem a menor utilidade. Imediatamente arrependido, o egrégio cidadão levou ambas as mãos à cabeça, num gesto de visível desespero; e num desespero aïnda maior, pôs-se a sapatear histericamente sobre os restos mortais do aparelho. A essa altura, algumas senhoras que voltavam da feira já observavam horrorizadas, meu pai já havia assomado à porta de nossa avícola, o português do mercadinho também, a japonesa do bazar e o cearense da padaria também. O pobre homem de bigodes tristes sentiu-se acuado: resmungou alguma ladainha, recolheu o ex-celular e afastou-se cabisbaixo. E isso foi numa abafada manhã dum domingo estivo, em 1999.
* * *
Ano novo, vida nova? Espero também, visto que este ano vindouro, as coisas têm tudo para que dêem certo; dependerá, pela primeira vez, do meu esforço - e serei generoso em bem fazê-lo. Depende de mim e é para não só a minha felicidade, mais uma segunda parte também (assim o espero e penso); chega de escutar só lamentos e resmungos; queixumes e azedumes. Chegou a vez da minha aurora; chega das noites sem lua a tropeçar pelas pedras do caminho e dar de fuça dos muros da minha ignorância. E’ finito. Vê-se já o arrebol da manhã, tenuamente colorindo o céu, céu de puríssimo azul; os sinos começam a badalar pela cidade até então deserta, dominada pelo medo, pelo vento e pelos rolos de mato seco. A orquestra do município já saiu e está defronte à Igreja, onde as portas fecharam pela última vez e levaram consigo a luz; estão tocando a abretura de Bylina, de Kalinnikov. E vem já a aurora. Colorindo as plantações de milho e as ruas de paralelepípedos, fazendo sua luz entrar pelas mínimas frestas, dissolvendo o húmido cheiro de bolor e mofo.
E adesso, prendiam un caffè?
1 Comentários:
Caro Conde,
que lindo porvir se anuncia! Que ensolarada manhã! Já posso sentir o cheiro do recém-coado café...
Abracci,
Eva
Enviar um comentário
<< Home