Hungria, minha terra
As ruas de Újfehértó são angustas, recobertas de parelepípedos e limo. Sob o inverno, os paralelepípedos ficam assustadoramente símiles a cubos de gelo; cubos não propriamente, mas sólidos retangulares. Não conheço praticamente ninguém na cidade, afinal, exilei-me aqui somente há alguns dias. Evito sair do pequeno apartamento do primeiro andar do prédio do açougue, na praça Pécs; o tempo não é dos melhores e hoje de manhã nevou bastante; sentado na escrivaninha, só tenho noção que o tempo passa, pelos sinos da Basílica, do outro lado da praça.
Ontem tentei dar uma volta pelos arredores. Em verdade consegui, desci pela escada e acenei para o açogueiro - que é também o meu senhorio - que alegremente cofiou os bigodes, disse algo que identifiquei como um «bom dia» e perguntou algo. Dei de ombros e um sorriso amarelo. Ele também sorriu, mas muito mais vigorosamente, a ponto de oscilar a cabeça. Ganhei a praça. Ao fundo, no horizonte, vê-se umas montanhas e segundo Karélnyi, meu vizinho de apartamento e professor de húngaro, são os solapos dos Cárpatos, os Montes Apuseni, no vértice entre os Cárpatos prorpiamente ditos e os Cárpatos meridionais. Só consigo por enquanto falar com Karélnyi, pois é o único que entende o meu húngaro estropiado; e fala italiano.
- Guarda, Karélnyi! Quei monti! Come si chiamano?
- Sono i Carpati, Venardi. Sono già in territorio rumeno.
E realmente, estamos próximos da fronteira com a Romênia; mais ao norte, a Ucrânia.
Continuando com o meu passeio pela praça, sem Karélnyi como das outras vezes, parei diante da banca de jornal. O jornaleiro deu um sorriso afável; não disse nada, pois já me vira conversando somente em italiano. Talvez toda cidadezinha soubesse que havia um «italiano» lá. Passei os olhos pelos jornais. Conseguia pronunciar os nomes dos périodicos, conhecia já as letras, que afinal são o alfabeto latino, sabia a diferença de pronúncia de sz, surdo e zs, sonoro; mas não conseguia distinguir os que significavam os títulos. Igualmente com os livros; conhecia até alguns autores: Kisfaludy, Erdélyi, Kafka e Lukács; mas os títulos novamente. Pensava comigo quantos anos teria de ficar ali até conseguir aprender o mínimo de húngaro. Por enquanto, eu não consigo pedir nem esmola.
A diferença entre sz e zs, Karélnyi explicou-ma magistralmente: «Venardi! É como em polonês!» Realmente muito boa, se eu conhecesse polonês. Ádám Karélnyi. Era professor de língua húngara na escola primária da cidade. Tinha uma paciência infinita, mesmo comigo, que mal conseguia diferenciar o som do y e do i; tinha um cultura vastíssima e disse que logo traria um amigo seu, poeta, de Budapeste que queria apresentar-me de qualquer jeito. Viria de trem.
- Ou então podemos ir nós a Budapeste. Que achas, Venardi.
Budapeste eu só conhecia o trajeto do aeroporto até a estação de trem, inclusive Karélnyi fora buscar-me no aeroporto, pois eu não teria a mínima condição de deslocar-me sozinho. A língua era uma muralha desesperadora. E aïnda é. Da praça, olhava marejado os Cárpatos. «Lá é a Romênia... São latinos também; falam uma língua latina... seria muito mais fácil entendê-los...».
Por ora, tenho de contentar-me em resmungar algumas palavras com o açougueiro, assistir as lições que Karélnyi me leciona no meu apartamento e ir como exotismo às aulas da escola. Karélnyi pediu para que eu fosse consigo à escola para mostrar-me aos alunos. Quando entrei os alunos não se assombram. Era uma segunda série primária. Um dos alunos levantou-se e timidamente desafiou Karélnyi:
- Professor, este senhor não é brasileiro.
- E porque não, Petölfi?
- Ele não é negro...
- E quem te disse que só há negros no Brasil?
- É o que mostra a televisão, no desfile de Carnaval do Rio de Janeiro. Eu acho que ele é tão húngaro quanto nós todos. - continuou o aprendiz de valentão Petölfi.
- Sérgio inclusive não é do Rio de Janeiro - cortou Karélnyi - É de São Paulo; uma cidade mais ao sul, com dez milhões de habitantes...
- Na melhor das hipóteses ele é polonês...
- Não, Petölfi, no Brasil, há brancos também, principalmente em São Paulo e nas pronvíncias do sul.
Eu tinha entendido «províncias». Emendei em italiano:
- Províncias não, Karélnyi; estados.
- Ah! - esclamou Petölfi - ele respondeu em espanhol, mas entendeu húngaro! Ele é húngaro!
A sala começou a agitar-se. Eu entendi meia dúzia de palavras mas entedi o que se passava. Karélnyi começou a ficar vermelho.
- Não! Primeiro não é espanhol! - rugiu Karélnyi - é italiano. E ele fala italiano, pois eu não entendo português. No Brasil não se fala espanhol, se fala português.
Karélnyi quase roxo, voltou-se para mim e disse em italiano:
-Pelo amor de Deus! Diga algo em português para esses monstrinhos antes que eu enlouqueça.
Nunca vira até então Karélnyi naquele estado de nervos. Anunciou para a sala em húngaro que eu ia dizer algumas palavras em português. Vi quase setenta olhinhos sedentos, que colavam-se-me à roupa quase. Aproximei-me da cartei da Petölfi, a qual dividia com uma menininha de cabelos ruivos. Afaguei a cabeça de Petölfi e disse-lhe em um húngaro quase sem sotaque:
- Jó reggelt, Petölfi! Hogy vagy? (bom dia, Petölfi! Como vai?)
Petölfi escancarou a boa de estupor e gaguejou:
- Megvagyok... (mais o menos...)
Dirigi-me ao fundo da sala e sentei-me numa das carteiras que estavam vazias. Diante do tablado verde da lousa, Karélnyi não estava mais vermelho, mas sim atônito e branco feito cera.
Foi assim que ganhei a cidadania húngara, pelo menos frente aos alunos de Karélnyi.
Ontem tentei dar uma volta pelos arredores. Em verdade consegui, desci pela escada e acenei para o açogueiro - que é também o meu senhorio - que alegremente cofiou os bigodes, disse algo que identifiquei como um «bom dia» e perguntou algo. Dei de ombros e um sorriso amarelo. Ele também sorriu, mas muito mais vigorosamente, a ponto de oscilar a cabeça. Ganhei a praça. Ao fundo, no horizonte, vê-se umas montanhas e segundo Karélnyi, meu vizinho de apartamento e professor de húngaro, são os solapos dos Cárpatos, os Montes Apuseni, no vértice entre os Cárpatos prorpiamente ditos e os Cárpatos meridionais. Só consigo por enquanto falar com Karélnyi, pois é o único que entende o meu húngaro estropiado; e fala italiano.
- Guarda, Karélnyi! Quei monti! Come si chiamano?
- Sono i Carpati, Venardi. Sono già in territorio rumeno.
E realmente, estamos próximos da fronteira com a Romênia; mais ao norte, a Ucrânia.
Continuando com o meu passeio pela praça, sem Karélnyi como das outras vezes, parei diante da banca de jornal. O jornaleiro deu um sorriso afável; não disse nada, pois já me vira conversando somente em italiano. Talvez toda cidadezinha soubesse que havia um «italiano» lá. Passei os olhos pelos jornais. Conseguia pronunciar os nomes dos périodicos, conhecia já as letras, que afinal são o alfabeto latino, sabia a diferença de pronúncia de sz, surdo e zs, sonoro; mas não conseguia distinguir os que significavam os títulos. Igualmente com os livros; conhecia até alguns autores: Kisfaludy, Erdélyi, Kafka e Lukács; mas os títulos novamente. Pensava comigo quantos anos teria de ficar ali até conseguir aprender o mínimo de húngaro. Por enquanto, eu não consigo pedir nem esmola.
A diferença entre sz e zs, Karélnyi explicou-ma magistralmente: «Venardi! É como em polonês!» Realmente muito boa, se eu conhecesse polonês. Ádám Karélnyi. Era professor de língua húngara na escola primária da cidade. Tinha uma paciência infinita, mesmo comigo, que mal conseguia diferenciar o som do y e do i; tinha um cultura vastíssima e disse que logo traria um amigo seu, poeta, de Budapeste que queria apresentar-me de qualquer jeito. Viria de trem.
- Ou então podemos ir nós a Budapeste. Que achas, Venardi.
Budapeste eu só conhecia o trajeto do aeroporto até a estação de trem, inclusive Karélnyi fora buscar-me no aeroporto, pois eu não teria a mínima condição de deslocar-me sozinho. A língua era uma muralha desesperadora. E aïnda é. Da praça, olhava marejado os Cárpatos. «Lá é a Romênia... São latinos também; falam uma língua latina... seria muito mais fácil entendê-los...».
Por ora, tenho de contentar-me em resmungar algumas palavras com o açougueiro, assistir as lições que Karélnyi me leciona no meu apartamento e ir como exotismo às aulas da escola. Karélnyi pediu para que eu fosse consigo à escola para mostrar-me aos alunos. Quando entrei os alunos não se assombram. Era uma segunda série primária. Um dos alunos levantou-se e timidamente desafiou Karélnyi:
- Professor, este senhor não é brasileiro.
- E porque não, Petölfi?
- Ele não é negro...
- E quem te disse que só há negros no Brasil?
- É o que mostra a televisão, no desfile de Carnaval do Rio de Janeiro. Eu acho que ele é tão húngaro quanto nós todos. - continuou o aprendiz de valentão Petölfi.
- Sérgio inclusive não é do Rio de Janeiro - cortou Karélnyi - É de São Paulo; uma cidade mais ao sul, com dez milhões de habitantes...
- Na melhor das hipóteses ele é polonês...
- Não, Petölfi, no Brasil, há brancos também, principalmente em São Paulo e nas pronvíncias do sul.
Eu tinha entendido «províncias». Emendei em italiano:
- Províncias não, Karélnyi; estados.
- Ah! - esclamou Petölfi - ele respondeu em espanhol, mas entendeu húngaro! Ele é húngaro!
A sala começou a agitar-se. Eu entendi meia dúzia de palavras mas entedi o que se passava. Karélnyi começou a ficar vermelho.
- Não! Primeiro não é espanhol! - rugiu Karélnyi - é italiano. E ele fala italiano, pois eu não entendo português. No Brasil não se fala espanhol, se fala português.
Karélnyi quase roxo, voltou-se para mim e disse em italiano:
-Pelo amor de Deus! Diga algo em português para esses monstrinhos antes que eu enlouqueça.
Nunca vira até então Karélnyi naquele estado de nervos. Anunciou para a sala em húngaro que eu ia dizer algumas palavras em português. Vi quase setenta olhinhos sedentos, que colavam-se-me à roupa quase. Aproximei-me da cartei da Petölfi, a qual dividia com uma menininha de cabelos ruivos. Afaguei a cabeça de Petölfi e disse-lhe em um húngaro quase sem sotaque:
- Jó reggelt, Petölfi! Hogy vagy? (bom dia, Petölfi! Como vai?)
Petölfi escancarou a boa de estupor e gaguejou:
- Megvagyok... (mais o menos...)
Dirigi-me ao fundo da sala e sentei-me numa das carteiras que estavam vazias. Diante do tablado verde da lousa, Karélnyi não estava mais vermelho, mas sim atônito e branco feito cera.
Foi assim que ganhei a cidadania húngara, pelo menos frente aos alunos de Karélnyi.
2 Comentários:
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Eva, minha avó, penteava meus cabelos longos e embaraçados praguejando em seu castelhano levemente italianado, no suave calor dos verões de vinte e poucos anos atrás:
- Pareces una húngara, porca pipa!!!
Enviar um comentário
<< Home