domingo, setembro 19

O filme que Truffaut não fez.

(A lamentável história de François Vinard - primeira parte)
A primeira cena mostra um rapaz, magrela, branco descendo uma avenida que passou recentemente por uma reforma, está cheia de buracos. (continua a música que havia durante os créditos, uma suíte de piano sobre o hino da Albânia) Tapumes e redes de isolamento não conseguem segurar o pó levantado pelo tráfego dos automóveis, na verdade nem é essa sua função. A câmera o acompanha do canteiro central, sendo entrecortado a imagem por automóveis subindo no sentido oposto ao caminhar do protagonista; cada ônibus ou caminhão que passa levantando considerável nuvem de pó, este coloca a mão sobre o nariz.
Consigo, o protagonista leva uma bolsa à tiracolo (mais pesada que o próprio) e uma sacola de plástico duma livraria conhecida. Caminha titubeante em meio às crateras da calçada e os buracos cobertos com areia fofa, o que volta e meia o faz desequilibrar-se. Vem subindo a rua um homem de terno com uma máscara. O protagonista o olha estupefato, mas depois, pelos seus gestos, entende-se que afinal, ele concorda com a medida, o ar cada dia que passa está mais irrespirável, ainda mais nos grandes centros urbanos, nessas avenidas pulvurulentas.
Numa esquina, livra-se da avenida infernal e segue por um’outra transversal, passa diante dum muro de cemitério, sempre do mesmo jeito, com a bolsa e a sacola, andando a passos largos. Termina o muro do campo-santo, atravessa uma ruela e na seguinte dobra, desce mais uma vintena de metros. A rua é uma curva, extremamente escura. Aparentemente perdido, busca algo no bolso. Um papel. Consulta-o e olha adiante. Sim, ali está já o que ele procura, encravada entre duas casas, uma escada que dá acesso à rua de baixo. Chegando mais na ponta (agora a câmera o vê da parte de baixo da escada, tendo esta toda dentro do raio de visão), vê a degradação daquele pedaço de mundo, vandalizado, urinado e pichado. Desce os degraus de dois em dois. Quando está chegando quase ao final da escada, vem vindo para subir uma bela moça, que evidentemente não passa desapercebida pelo protagonista que volve o pescoço para, digamos, focalizá-la melhor, discretamente, é claro. O que lhe vale um encontrão contra um poste. No final da escada, tem uma rua que sai bem de frente. Essa é a rua do seu destino, agora somente lhe resta encontrar o número. Anda mais um pouco pela rua e pára diante dum bistrô.
Fica alguns instantes parado e logo entra. Ainda não havia ninguém. O ambiente é assaz pitoresco, flâmulas pelas paredes, fotografias, centenas de objetos curiosos, como um velho projector de filmes, um molho de mil chaves e outras coisas mais. Toca por alto-falantes uma música de acordeom. Sentados no fundo. Um homem e uma mulher, que aparentemente trabalham do local. O protagonista esquadrinha o ambiente atenciosamente e depois dum momento de estupefação indaga aos do local:
— Eu posso sentar-me ali fora? Eu estou esperando uns amigos que vêm para cá também…
(o casal do lugar se entreolha)
— Oui, pode sim.
O protagonista dá um meio-sorriso e um aceno de cabeça.
— Merci.
Já é noite e ele senta-se numa mesa externa, a aguardar. Passam-se quase quarenta minutos. Sentado na mesa, apóia a cabeça com as mãos. No meio tempo aparecem alguns vendedores (de chicletes, de meias) e um realejo. De improviso, chega a primeira pessoa, uma conhecida sua, argelina.
— Boa noite! Faz tempo que estás tu aí? – pergunta gentil a moça.
— Boa noite! É, vai já uma quarantena de minutos… mas senta-te! Tu vieste a pé?
— Sim, eu vim sim.
— Ah… e tu vieste por onde?
— Pela principal, ali embaixo (a moça indica com a mão).
— Acabaste dando um pouco de volta, não? Tu poderias ter vindo por ali… por trás, pela escada…
— Hum… eu não sabia…
A câmera os focaliza paralela à calçada e por esta se vê vindo mais um grupo de pessoas. São os esperados.
— Hou! Olá! como tendes vós passado?
(todos se cumprimentam com um certo alarido) Então, uma segunda moça propõe:
— É melhor que nós fiquemos lá dentro não?
(os outros concordam e ingressam) Tomam lugar numa mesa rústica de madeira e põe-se a conversar. Um deles é o aniversariante. Cumprimentam-no todos. O protagonista, tira da sacola um embrulho chato em papel amarelo.
— Espero que tu não repares… é somente uma lembrança, um recordo…
— Ha, ha! Parece-me um livro!
— É, tu bem o sabes que somente consigo presentear livros…
— Ah, mas tem coisa melhor que livro? Eu pessoalmente adoro ganhá-los!
— Mas veja aí se é do teu agrado…
(o aniversariante desfaz o pacote e olha para o livro continuamente)
— Mas que ótimo. Adorei! Olha, Catherine, o que eu ganhei.
— Très bien, Maurice! Mas que ótimo livro! François tem um bom gosto para livros…
— É somente o que eu sei dar – disse François, o protagonista – Minha mãe não agüenta mais ganhar livros, no Natal, no Ano-Novo, sempre livros.
(uma gargalhada geral)
Passa-se mais um tempo, no qual o aniversariante Maurice é presenteado ainda com uma bela jóia.
— Guarda, guarda! Mas que belo!
— Muito bela!
— Chic, très chic!
— Mas tu sabes que ela combinou contigo?!
François, pela sua natureza, mantém um ar um pouco distante, não por maldade, mas simplesmente por que assim é sua natureza, somente-só. Mais alguns minutos de diálogos genéricos e pedem alguns café e brioches. Chegam Aïda e sua prima. Cumprimentam todas as pessoas da mesa, novamente um grande alarido.
Aïda vai sentar-se na mesa do lado oposto àquele de François, entre Maurice e Catherine. Sua prima, Suzanne senta-se sim ao lado de François. Este mantém uma face, pouco amigável, mais por cansaço que por chatices. A câmera mostra um pouco os outros componentes da mesa e quando volta a François, ele está com uma conversa amarela com Suzanne. Apesar do seu mal-estar psicológico, procura ser simpático com a moça. Ele tem a plena consciência que as pessoas circunstantes não tem culpa.
— E então, como tu tens andado?
— É… com as pernas.
François abaixou os olhos em direção ao prato, visivelmente incomodado.
— Aaah…, conseguiu balbuciar François.
O alarido circundante continua no segundo plano.
— É… eu ainda não consigo plantar bananeira… andar com as mãos; mas estou treinando… - continuou seriamente Suzanne.
François não soube o que responder. Sorriu muito a contragosto e apertou os olhos por detrás dos óculos. Mordeu o lábio inferior.
— Ah, que bom… que bom… fazes-tu muito bem… beníssimo…
François abaixou novamente os olhos para um copo. Apesar do alarido d’entorno e da própria mesa, formou-se entre os dois um silêncio constrangedor, enquanto Suzanne continuava a mirá-lo, percebeu o que acontecera.
— Desculpe-me… foi um deslize…
— Não tem problema; escuto piores todo-santo-dia. – Completou François à meia-voz.
Daquele momento em diante, mostrou-se na mesa reticente, o que foi confundido com siso absurdo.
— Estás muito sério… para que toda essa seriedade, sorria um pouco. – Falou-lhe a cert’altura Suzanne.
— Não é seriedade; é tão-somente cansaço… - respondeu num sorriso mais-que-amarelo.
Para vir embora, cumprimentaram-se todos. A cena mostra François cumprimentando Maurice.
— Até mais, Maurice. E feliz-aniversário!
Abraçam-se.
Ele vem de carona com Catherine. No carro vem também Ismène, no banco traseiro. Catherine os deixa numa estação do Metropolitano. (câmera vendo de longe) Despedem-se; Ismène desce junto, mas pegará um ônibus. François sobe sozinho a escada rolante da estação; mastigando a estupidez das suas ações, das suas palavras incautas. Põe o bilhete no bloqueio e desce para a plataforma. A câmera o focaliza de pé na plataforma, arqueado e com uma cara extenuada. Chega o trem, ele entra e senta-se. A câmera acompanha dum ponto fixo, girando, o trem saindo da estação.


1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Oi, aqui é a Sandra... Depois de uma leitura dessas só confirmo o pensamento de que quero uma corda ou um tanto de veneno.

segunda-feira, setembro 20, 2004 11:21:00 da manhã  

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