Kyrie eleïson
«proprio nel giorno in cui, / la decisione è mia / sulla condanna a morte / o la amnistia.» (F. De Andrè)
Acordamos hoje eu e meu inseparável mau-humor. Mesmo sendo sábado e tendo sido esperado durante toda semana esse sábado, o prenúncio da segunda-feira ventura já é suficiente para azedá-lo. E ficar em casa tem seus preços; um deles é acompanhar minha querida genitora ao supermercado, ao maldito supermercado, cheio de gente parada diante das gôndolas, o braço estendido segurando uma lata de sardinhas ou molho de tomate para poder ler componentes químicos totalmente abstratos, que acreditam que sejam a esses consumidores totalmente desconhecidos; tanto faria se estivesse escrito em português ou em grego, aquela enxurrada de nitratos, bicarbonatos, sulfatos e congêneres.
Fazendo a semanal via-crúcis, jogando o carrinho sobre aqueles que ficam estáticos diante dos produtos, como se embasbacados e soltando após um cínico «me desculpe», ao improviso, vi uma imagem que me gelou a alma. Com fardos de papel-higiênico, de embalagem verde (aromatizado a maça-verde), amarelo (pêssego) e azul (não sei se há alguma fruta azul), fizeram um imenso mosaico simulando a bandeira nacional. Tive de olhar novamente; não é possível, troquei os óculos ontem! Tirei-os e inspecionei-os, tudo em ordem. Recoloquei-os diante dos olhos e saltou-me à face aquele espetáculo horrendo: a bandeira feita de papel-higiênico e pais embaixo apontando para os filhos: «olha, ’tá vendo? Igual àquela que a gente uso’ na Copa, lembra, filho?».
— Vamos embora já, mãe! Não posso ficar aqui dentro nem mais um minuto com esse povo infecto.
Digamos que essa última frase eu a tenha pronunciado um pouco alto demais, a ponto de chamar a atenção dos circunstantes.
— Cal’a boca!
— Se não bastassem as calhordices qu’eu agüento naquele antro a semana toda, no final de semana ainda so’ obrigado a ver um… um… um negócio desse?!
— Fica quïeto, energúmeno – atalhou amavelmente a minha mãe – já tem gente olhando…
E eu, no alto dos meus vinte-dois, quase vinte-três anos ameacei masculamente:
— Ou nós vamos, ou eu canto Giovinezza!
— Que?! Fico’ louco, menino?
— Giovine-ezza, giovine-ezza, primavera di bele-e-e-ezza…
Alguns olhares tortos das pessoas mais próximas, mas certamente não sabiam o que ouviam, mas minha mãe já começava a ter no rosto uma coloração avermelhada.
— ’Tá, ’tá… toma a chave e vai pr’a casa…
Se tudo se resolvesse assim, ia bem; mas tem o ambiente estéril de casa; infelizmente inevitável, os meus, vivem de comezinharias, de inflamadas de discussões do preço do óleo de soja, ou do louco que matava os taxistas não-sei-lá-onde e vizinhos que fazem barulho. Às vezes até me sinto mal por não ter paciência com eles, mas é sempre assim e tudo aquilo que tento comentar é rapidamente posto de lado, simplesmente atropelado por um desses assuntos corriqueiros, a minha avó com suas polêmicas em torno da troca dos roda-pés, um inconformismo estúpido e sem fundamento nenhum, sem base alguma.
A que ponto que chegamos, a uma vida insossa, sem alegrias, sem amores, sem horizontes. E eu cá, olhando para o teto branco do meu quarto igualmente sem horizontes ou no que esperar, contando os dentes dos selos, carimbando formulários de seguro, trocando as minhas horas de vida por dinheiro sonante, dizendo «bom dia», «obrigado», ou seja, sendo um rapaz bonzinho, bonitinho, com o coração sem pulsação e a cabeça com cebolas podres ao lugar do cérebro; suportando essas situações surreais, esses nojentos clientes de banco, fauna odiosa. Perdi o trem da vida e continuo andando sobre os trilhos.
Há vezes que vou dormir, imaginando que o dia de amanhã não haja, que simplesmente tudo passe do vazio virtual para o vazio real, a não-existência; a mim, que já estou morto a um bom tempo, «mi fa lo stesso», afinal, hoje somos o mundo da estupidez em escala industrial.
Nem há mais a ameaça da bomba atômica para que nos haja alguma esperança. Nem guerra nuclear; nem terroristas. E comprar arsênico é difícil.
Que o Deus aposentado tenha piedade de nós.
Agora dai-me um tempo que vou comprar o jornal e levar o elefante para passear. Quem sabe nesse meio tempo não encontro um fundamentalista islâmico?
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