terça-feira, setembro 7

Lacrimosa

«La polvere, il sangue,
le mosche, l’odore,
per strada, fra i campi,
la gente che muore…»
(Fabrizio De Andrè)

Não queria desesperar-me mais; mas visto as situações que se sobrepõem, às borrascas, procelas e celeumas, é impossível. Cada dia mais as minhas incompatibilidades com essa sociedade vil tornam-se mais visível; me sufocam todo dia, me fazem o dia-a-dia insuportável, perdido em atos comezinhos, sofríveis. E nós, perdidos em satisfazer chefes e autoridades, nos negligenciamos e também tudo aquilo que ocorre. Como o Iraque, como os conflitos na Chechênia; e então uma foto cheia de corpos nos bate na cara, crianças, meu Deus do Céu! Até que ponto chega o egoísmo humano, já que «não importam os meios, mas sim o fim» e não só no dia-a-dia: «vamos lá, quero isso pronto para hoje»; «eia, venda mais!», mas também nos extremistas chechenos, que para alcançar seus objetivos – duvidosos – entram numa escola e matam crianças.
Fora todas coisas reprováveis que ficaram para trás, os campos de concentração, os gulags, a repressão ao maio de 68, a ditadura militar; e isso, sentamos em cima e dizemos: «não, não é culpa minha, não tenho nada a ver com isso»; temos que atentar para que não se repita mais com ninguém, que não marchem de novo sobre nossos corpos, que não nos metam nos trens para os campos.
E hoje, fechados num escritório, somente faz eco o riscar das canetas, um digitar surdo e talvez uns carimbos atacando os papéis; e nesse ambiente estéril, nada mais é lembrado, como se fosse um mundo minúsculo, ou até mais, um universo, que fora dali, até as 5 da tarde somente o ignoto existe, e só a partir das 4 e meia sejam refeitas as ruas, os trilhos e as rodas do metrô, que ressurjam os mendigos com suas mãos eternamente espalmadas, os estúpidos shopping centers e uma reconexão dos escritórios estúpidos com o mundo, das sufocantes salas das atendentes de telemarketing, que tem as orelhas inchadas e as bocas moles. Somente às 5 menos um quarto se refazem os ônibus, como se pela mão do Onipotente, ressurgem os táxis, os vendedores de CDs piratas, as carroças de milho cozido, a imagem de Dante e d’A Divina Comédia. Cinco menos dez, se refazem as praças, suas estátuas sisudas de bronze; sobe a poluição dos ônibus, volta a consciência do funcionário de que existem outras pessoas; rebrilha a garrafa térmica, a cartela de Aspirina, o bilhete de ônibus, o seu reflexo no vidro das janelas e pelo lado de fora voam maritacas verdes. O Sol larga o banho e volta a encher a tarde com a sua luz abóbora.
Ignoramos que a vida pulula fora dali, que nascem flores que não conhecemos, em canteiros que não sabemos onde ficam, sobre tumbas desconhecidas e vão parar em cabelos de amores igualmente ignotos. Que continuam a existir os cemitérios ou pobres como o Vila Formosa ou imponentes como o Araçá, mas todos tristonhos e melancólicos. O lugar onde começa sim a não-existência, onde termina tudo aquilo com que mais nos preocupamos, que retocamos com plásticas, que forjamos nas academias de musculação. Termina tudo lá, mais cedo ou mais tarde. Que dê voltas pelo mundo, conheça Leopardi, recite Dante, admire Dostojévskij. Termina tudo lá, amanhã. Adubaremos os repolhos todos nós, independentemente do que somos ou façamos, apodrecemos todos do mesmo jeito; mesmo que alguns se recusem a acreditá-lo. Se o bom Deus existe, certamente Ele não aceita propina em dinheiro.
Às cinco, estão os elevadores dos prédios de escritórios estão cheios de gente cansada, um monte de «boas-tardes». Ora vão todos à merda! Qualquer um ali dentro pode ter um detonador e uma bomba amarrada ao corpo e se o aperta explode o elevador como se fosse ou uma lata de ervilhas ou um porta-guardanapos vagabundo de boteco. Assim acompanharíamos as crianças mortas pelos chechenos nos jornais com uma foto do elevador caído no térreo os corpos despedaçados como um salpicão de frango. Somente aí a consciência do que é o ser humano, afinal, nada mais que um invólucro com um monte de porcariadas nojentas, compostas na sua maioria por água, a mesma que corre no Tietê.
Tudo em primeira página.

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

ainda bem que há o invólucro para manter a porcariada do lado de dentro. podia ser pior, nós poderíamos ser uma ferida aberta ambulante. e não somos.
-- Buu, http://bcbuu.zip.net

terça-feira, setembro 07, 2004 11:10:00 da tarde  
Blogger Unknown disse...

fiquei feliz por ler seu post no meu blog... engraçado porque eu nunca me importei com isso, mas apesar de ler seus escritos diariamente, vc me parecia um reflexo de mim, como se eu tivesse lido o que tinha escrito, e agora, vc passou a ser uma pessoa na minha vida, uma pessoa que tem a mesmo melancolia barbara, e o mesmo repudio pelo cotidiano futil...

terça-feira, setembro 07, 2004 11:53:00 da tarde  

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