Café e freshmint
Segunda-feira, dia novo, semana nova. Quase todos os dias, a mesma parada de quinze, vinte, vinte e cinco minutos no mesmo banco da estação do metrô. Os mesmo minutos, sendo que o meu relógio está sempre cinco minutos adiantado frente à hora oficial e conseqüentemente ao relógio da estação – o que me ilude em haver um pouco a mais de tempo. Depois, seis horas de sem-consciência, seis e meia até sete, prolongam-se em infinito torpor e escuridão, no ninho das águas do sistema financeiro, alto baluarte do sistema financeiro e suas falhas hediondas. Paciência. Todo dia é uma guerra, uma nova guerra a cada aurora; já que assim optou a humana grei, o debater-se todo dia, alheio a tudo quanto realmente importa a nós, humanos; como a voz estúpida da funcionária do metrô que ecoa pela estação, propagada pelos alto-falantes para que um funcionário estúpido compareça a algum lugar igualmente estúpido.
No banco, tivemos mais uma edição das jornadas dos «bolos administrativos»; consistindo na comemoração da efeméride de nascimento de algum dos funcionários. Esta segunda foi a vez de Soline; bolo, parabéns e um presente dado e pago com contribuições dos outros funcionários. Realmente, uma «torta amministrativa».
Antes do bolo, procurava eu, no armário branco do banco, certos contractos de empréstimo que deveriam ter consigo umas tais guias de pagamento, relativas a umas merrecas, diferenças unitárias, decimais e centesimais de juros descontados indevidamente. Nesse meio tempo, o banco já havia fechado a porta e sentado na poltrona vermelha, tinha em minhas mãos o último contracto que deveria procurar; quando me tomou o maldito ímpeto. Afinal, estava eu a centímetros da garrafa térmica: servi-me dum copinho de plástico e pelo botão da garrafa, fazendo o jogo de pressão, aumentando a sua pressão interna, fiz com que se enchesse o copo com alguns milímetros de café.
Mui bem, mas quando fui aproximá-lo da boca, não sei que diabo fez uma das minhas mãos esquerdas (certo que são ambas esquerdas), que o café fugiu do copo, precipitando-se primeiramente sobre o contracto sobre o meu colo, e logo após, para completar dignamente seu papel de agente emporcalhador, escorreu sobre minha camisa e minha calça, quase sobre a junção da perna esquerda com o tronco e na camisa sobre o umbigo. Fora a poltrona, e fora a pasta que continha alguns-outros contractos, que estava sobre a perna direita.
Bem, o atestado de idiotice já me outorgara há tempos; mas não posso torná-lo público. Daí a criação duma «estorieta complementar e provisória», vulgo mentira. O mais difícil não é criar a estória em si e camuflar o facto ou omitir-lhe detalhes; mas sim ter de dar corpo e verossimilhança a ela.
Nisso, a minha mente doentia é primaz. Há factos passados que deturpei de tal modo que não me lembro realmente o que aconteceu. Creio que tenha sido o ministro da Propaganda do regímen nazista (era o Goebbels?) que disse: «uma mentira dita mil vezes torna-se verdadeira».
A gente (1) pensa pouco com o cérebro e pouco com o coração. O desenvolver-se do pensamento deveria equilibrar-se entre razão e emoção. Cinqüenta-por-cento cada um. O que se vê, inclusive eu-próprio cá me incluo e acuso-me: talvez nove décimos do pensamento sejam factores alheios e o resto de coração, daí as desilusões e desgostos. Quanto aos 90% diversificados, cada um vai à sua maneira: imagino que os «ratos de academia» raciocinem (o pouco que o fazem) com a batata-da-perna, com o bíceps torneado ou com o abdômen esculpido; os famintos pensam majoritariamente com o estômago; os que não têm dinheiro pensam com um acessório: o bolso vazio de suas calças. Os velhos pensam pelas suas bengalas; e o homem médio – desse tipo que vemos por aí, pelos lugares comuns – esse pensa prioritariamente com a genitália. Os burocratas pensam pelos seus carimbos ou pelos seus velhos crachás, os juízes pelas suas togas ou perucas (o que se lhes assentar melhor), alguns-outros pensam ainda pelos seus piercings, suas bolsas caras ou pelas garrafas de vinho caríssimas e amargas que tomarão um dia.
Esta semana, houve, também por uma minha efeméride das minhas vinte e três primaveras, um livroncelo que me fez pensar melhor…
Como quase todos os dias, ao pagar o almoço no restaurante do Hospital, pego sempre pego também uma embalagem de coma de mascar. Sempre a pego variegando, um dia hortelã, outro morango, aqueloutro uva e assim vai. Certa jornada, ao olhar para a caixinha onde ficam arrumadas as embalagens, chamou-me a atenção umas embalagens que se destacavam pela sua cor azul-celeste; pegando-a na mão, no lugar do desenho da fruta à qual corresponde o sabor, havia o desenho de uma cadeia de montanhas nevadas, tal-qualmente os Alpes ou os Andes; brinquei com o caixa:
— Afinal que sabor é este?
Ele deu de ombros e fez uma careta entortando a boca para baixo.
— Será que é de montanha? – rebati – Afinal, tem umas montãinhas cá impressas!
— He, he… - sorriu amarelo o pobre funcionário.
— Talvez seja sabor rocha…
A inscrição freshimint indicando o sabor não refresca lá muito. Sei que é inglês, mas o meu inglês é péssimo. Acabei ficando com uma embalagem e abandonando o recinto do restaurante por um corredor entre dois prédios de vinte andares, que dá a impressão de estar-se no fundo de um abismo, pus um dos cinco chicles da embalagem na boca. Um sabor assaz estranho.
— Mas que cazzo! que gosto de Vick Vaporub! – ecoou pelo imenso vão.
Voltei para o trabalho e depois do expediente, como todos os dias, dirigi-me à Faculdade. Durante uma aula de Literatura Nacional, ofereci um dos chicletes a André, que enquanto escrevia depositou-o do lado do caderno. Virei-me e ofereci um a Júlia.
— Hum! Isso tem gosto de Gelol! Não, obrigada.
André voltou-se alguns instantes depois, saindo do transe da leitura:
— Chiclete… é do que?
— Depende do seu paladar – respondi - , pode ser tanto de Vick Vaporub quanto de Gelol… se estiveres inspirado pode ser até que sintas gosto de Pinho Sol…
(1) «gente» nesse caso aplica-se como colectivo: «pessoas», «o povo».
5 Comentários:
freshmint, portanto, deve ser cânfora.
E eu digo e repito que
se o mal do XIX foi o nacionalismo
o do XX foi a sociologia.
um beijo procê,
da Júlia.
lembrando que como uma boa frase de efeito aquela contém defeitos.
um beijo
júlia.
Também sou vítima cotidiana do marketing himalaico dos chicletes. Será que eles fazem isso em todos os comedouros corporativos?
Aliás a pizza e os convivas estavam ótimas, pena que desistimos de tacar fogo na toalha de mesa.
Em todo caso, lembre-se: 1) as estações de metrô, mesmo as da Zona Leste, dispõem agora de quisques de Nescafé (o capuccino é industrializado, mas passável); 2) Premiata Forneria Marconi regna sopra tutti - muito recomendada aquela que começa assim: "Sire, Maestà, riverenti come sempre siam tutti qua; Sire, siamo noi, il poeta , l'assassino, Sua Santità; tutti fedeli amice tuoi". Sei lá, sei lá.
Orlando
Reflexão com a cabeça de baixo:
- Ao menos os marombados trepam.
Miguelson
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