Fastídio e maldades variegadas
Uma das características do meu eterno estado de enfado é a de criar histórias absolutamente absurdas e disseminá-las. Nem como fato vero, nem como mentiras; o critério estabelece-o quem escutar. Aplico as anedotas geralmente para perguntas repetitivas e óbvias. Um exemplo prático: a minha egrégia genitora sempre está acordada quando chego à casa, devido à sua consueta insônia, bombardeia-me com informações absolutamente dispensáveis como consertos de caixas de inspeção, correspondência publicitária totalmente descartáveis e mais outros tantos detalhes da vida doméstica e sarilhos com a sua genitora, minha avó. E as perguntas de todo dia, a mas típica: o que você almoçou hoje?
Primeiro, eu respondia sem problema algum, porém vinham sempre as restrições: «você não deveria comer tal coisa, porque tal coisa faz mal» etc., etc. e tal ou «deve comer mais disso e daqueloutro» e uma coisa da qual não abro mão quando estou fora de casa, é a minha autonomia gastronômica.
Cansado das sugestões dadas com voz impositiva, simulo até hoje uma amnésia selectiva gastronômica; simplesmente digo que não lembro.
— Como você não lembra o que come?!
— Eh, assinh’é.
— Mas num lembra nada; arroz, feijão…?
— Non; nada.
Porém, como mamá não desistia do seu intuito de arrancar-me as informações nutricionais do meu almoço, comecei a bancar o louco desde ontem no jantar.
— Que comeste ò almoço?
— Hum… vejamos… hoje parece lembra’-me…
Seus olhos rebrilharam por alguns instantes.
— Entonce, diga lá!
— Si! Lembra-me! Almocei dois sapos e uma salada de folhas de palma.
Mamãe retorceu o rosto numa careta de incredulidade.
— Que?
— Ou seria um estrogonofe de ornitorrinco e salada de talo de bambu?
— Vai sandeu, menino?!
Comecei a cantar.
— Se quel guerrier io fossi! Se il sogno se averasse!
— Quïeto! Teu pai está a dormir!
— Un esercito di prodi, da me guidato…
— Cal’a boca!
— …e la vittoria…
— ‘Tá, ‘tá! Você ganhou! Com você não dá pra fala’; onde já se viu! Não se pode pergunta’ nada!
Esse procedimento não é somente sadismo puro – agora me justifico – mas se trata de defesa, comportamento de retranca. Caso típico, com a minha avó, dignatária de meio-quintal nosso.
— Oi, vó. Buenas?
— Oi, o netinho da vó.
Alguns minutos em silêncio.
— Viste ò jornal ontem?
— Não, vó. Arrivo mui tarde.
— Entoces escoita: ontem, no Datena…
Vêm em pencas relatos escabrosos de todo tipo.
— Tuvo um neno que… um assalto à man armada! Durmas co essa, se puderes! E aqueloutro caso do…
Quinze, vinte minutos. Enfastio-me completamente.
— Hum… tudo isso, é? Bem, mas o pior eles nunca falam… - e vou virando as costas e em passos lentos vou em direcção à máquina de lavar. Sinto a sua curiosidade a pairar pesada pelo ar.
— Que ocorreu? Vem cá und’a mim e mo conta…
— Entonces, vó! Imagina que ontem, a San Miguel, um meliante assalto’ uma confeitaria – afinal, onde há confeitarias em São Miguel? – e saiu a correr da loja com o dinheiro nos bolsos e uma torta nos braços…
— Mas é?!
— Digo-lhe ainda mais! Ele não viu que havia um helicóptero da Policia a pairar de-sobre às casas e lá de-sobre das casas atirou pra baixo.
— Virxe Maria!
— Pois é. Acabou o gajo caído ca cara por de-sobre a torta; morto. E sangue dele de-sobre o passeio parecia groselha Milani…
— Mas que horror! Mas não passou na televisão!
Viro-me de improviso e faço um grande gesto com as mãos abertas.
— Ah, vó! – afetei a voz com autoridade –Tem certas coisas que eles não dizem para não assustar as gentes…
* * *
Tenho plena certeza que não serei condenado pela Convenção de Genebra.
Primeiro, eu respondia sem problema algum, porém vinham sempre as restrições: «você não deveria comer tal coisa, porque tal coisa faz mal» etc., etc. e tal ou «deve comer mais disso e daqueloutro» e uma coisa da qual não abro mão quando estou fora de casa, é a minha autonomia gastronômica.
Cansado das sugestões dadas com voz impositiva, simulo até hoje uma amnésia selectiva gastronômica; simplesmente digo que não lembro.
— Como você não lembra o que come?!
— Eh, assinh’é.
— Mas num lembra nada; arroz, feijão…?
— Non; nada.
Porém, como mamá não desistia do seu intuito de arrancar-me as informações nutricionais do meu almoço, comecei a bancar o louco desde ontem no jantar.
— Que comeste ò almoço?
— Hum… vejamos… hoje parece lembra’-me…
Seus olhos rebrilharam por alguns instantes.
— Entonce, diga lá!
— Si! Lembra-me! Almocei dois sapos e uma salada de folhas de palma.
Mamãe retorceu o rosto numa careta de incredulidade.
— Que?
— Ou seria um estrogonofe de ornitorrinco e salada de talo de bambu?
— Vai sandeu, menino?!
Comecei a cantar.
— Se quel guerrier io fossi! Se il sogno se averasse!
— Quïeto! Teu pai está a dormir!
— Un esercito di prodi, da me guidato…
— Cal’a boca!
— …e la vittoria…
— ‘Tá, ‘tá! Você ganhou! Com você não dá pra fala’; onde já se viu! Não se pode pergunta’ nada!
Esse procedimento não é somente sadismo puro – agora me justifico – mas se trata de defesa, comportamento de retranca. Caso típico, com a minha avó, dignatária de meio-quintal nosso.
— Oi, vó. Buenas?
— Oi, o netinho da vó.
Alguns minutos em silêncio.
— Viste ò jornal ontem?
— Não, vó. Arrivo mui tarde.
— Entoces escoita: ontem, no Datena…
Vêm em pencas relatos escabrosos de todo tipo.
— Tuvo um neno que… um assalto à man armada! Durmas co essa, se puderes! E aqueloutro caso do…
Quinze, vinte minutos. Enfastio-me completamente.
— Hum… tudo isso, é? Bem, mas o pior eles nunca falam… - e vou virando as costas e em passos lentos vou em direcção à máquina de lavar. Sinto a sua curiosidade a pairar pesada pelo ar.
— Que ocorreu? Vem cá und’a mim e mo conta…
— Entonces, vó! Imagina que ontem, a San Miguel, um meliante assalto’ uma confeitaria – afinal, onde há confeitarias em São Miguel? – e saiu a correr da loja com o dinheiro nos bolsos e uma torta nos braços…
— Mas é?!
— Digo-lhe ainda mais! Ele não viu que havia um helicóptero da Policia a pairar de-sobre às casas e lá de-sobre das casas atirou pra baixo.
— Virxe Maria!
— Pois é. Acabou o gajo caído ca cara por de-sobre a torta; morto. E sangue dele de-sobre o passeio parecia groselha Milani…
— Mas que horror! Mas não passou na televisão!
Viro-me de improviso e faço um grande gesto com as mãos abertas.
— Ah, vó! – afetei a voz com autoridade –Tem certas coisas que eles não dizem para não assustar as gentes…
* * *
Tenho plena certeza que não serei condenado pela Convenção de Genebra.
2 Comentários:
Coma-a e serás feliz. Ou não?
olha, genebra eu não sei, mas você faz a minha vida mais feliz.
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