O velho eu
…mamma mia, pe’ te!
Se te pigliava ’a primma gioventù!
(Pecché?, Pennino / De Flaviis)
Saí da igreja de São Luís e atravessei a Paulista. Eram pouco antes das dez da manhã de uma quarta pós-feriado. Entrei pela Bela Cintra e assaltaram-me uns velhos assuntos: ela. Deixei-a, como deixei também a imagem do velho eu. Ficaram lá, na esquina da Bela Cintra com a Itu, o espectro do velho eu que se apaixonara da mocinha doce e frágil, envoltos numa densa névoa, talvez o fumo dum cigarro. Assim prossegui a descer a rua, não sem antes de fazer-lhes um acento cordial:
— Adeus! Sejam felizes!
— Sim! O seremos por você – respondeu o eu de ontem.
— E seja-o também! – bradou a mocinha com sua costumeira voz cândida.
— O serei! – respondi – Até logo.
Do adeus, a saudação evoluiu para um até logo. Talvez o primeiro sinal do meu futuro, ou seja, que aquelas imagens não mais me deixariam. Continuei a descer a rua, andando e saltitando como fazem as crianças de dez anos. Justo naquele instante, voltei aos meus dez anos, livre, com vontade de comer doces, toneladas deles. Não pensava eu aquele átimo em mulheres, no estúpido dinheiro, nos chefes de escritório, nem aos milhares de imbecis como eu – visto que nas grandes cidades, somos tantíssimos!
Assim, a eterna minha guerra contra eu-mesmo; no meio do intratável palude da minha realidade, emergiu uma trégua. Acum ori niciodata!, berrava meu coração com ares romenos. Quanto duraria? Não o sabia, mas pude respirar um pouco melhor.
* * *
Sábado à tarde, voltava pela Marquês de Itu. Deixei meio litro do meu sangue; ao menos se sou socialmente imprestável, posso sim ainda servir para alguma coisa; senti-me nobre, un sînge de român, continuava um coração estranhamente romeno. Que há de mal? Afinal, somos todos latinos.
Indo distraïdamente, numa esquina com uma rua da qual não me lembra o nome – sei que era entre a Amaral Gurgel e a praça da República – sentia-me em comunhão comigo mesmo; tanto em comunhão, que naquela fatídica esquina, como se esperassem o bonde, estavam entrelaçadas as duas imagens que largara eu na Bela Cintra. O velho eu reprovou-me alguns comportamentos da véspera – afinal, somos o mesmo e de tudo ele sabe, apesar d’eu nada saber dele – e fundimo-nos novamente e o fantasma da moça doce e frágil voltou a acompanhar-me.
Senti-me tonto. Não soube se fora a doação de sangue ou se a vista daqueles espectros. Apoiei-me num poste e esperei passar; correram-me as lágrimas pelo rosto. Como pude ser tão egoísta; de ter renegado o meu próprio sangue, desfeito-me de velhas promessas. Jamais me perdoarei.
Cabisbaixo e com os olhos marejados, voltei ao metrô.
…mamma mia, pe’ te!
Se te pigliava ’a primma gioventù!
(Pecché?, Pennino / De Flaviis)
Saí da igreja de São Luís e atravessei a Paulista. Eram pouco antes das dez da manhã de uma quarta pós-feriado. Entrei pela Bela Cintra e assaltaram-me uns velhos assuntos: ela. Deixei-a, como deixei também a imagem do velho eu. Ficaram lá, na esquina da Bela Cintra com a Itu, o espectro do velho eu que se apaixonara da mocinha doce e frágil, envoltos numa densa névoa, talvez o fumo dum cigarro. Assim prossegui a descer a rua, não sem antes de fazer-lhes um acento cordial:
— Adeus! Sejam felizes!
— Sim! O seremos por você – respondeu o eu de ontem.
— E seja-o também! – bradou a mocinha com sua costumeira voz cândida.
— O serei! – respondi – Até logo.
Do adeus, a saudação evoluiu para um até logo. Talvez o primeiro sinal do meu futuro, ou seja, que aquelas imagens não mais me deixariam. Continuei a descer a rua, andando e saltitando como fazem as crianças de dez anos. Justo naquele instante, voltei aos meus dez anos, livre, com vontade de comer doces, toneladas deles. Não pensava eu aquele átimo em mulheres, no estúpido dinheiro, nos chefes de escritório, nem aos milhares de imbecis como eu – visto que nas grandes cidades, somos tantíssimos!
Assim, a eterna minha guerra contra eu-mesmo; no meio do intratável palude da minha realidade, emergiu uma trégua. Acum ori niciodata!, berrava meu coração com ares romenos. Quanto duraria? Não o sabia, mas pude respirar um pouco melhor.
* * *
Sábado à tarde, voltava pela Marquês de Itu. Deixei meio litro do meu sangue; ao menos se sou socialmente imprestável, posso sim ainda servir para alguma coisa; senti-me nobre, un sînge de român, continuava um coração estranhamente romeno. Que há de mal? Afinal, somos todos latinos.
Indo distraïdamente, numa esquina com uma rua da qual não me lembra o nome – sei que era entre a Amaral Gurgel e a praça da República – sentia-me em comunhão comigo mesmo; tanto em comunhão, que naquela fatídica esquina, como se esperassem o bonde, estavam entrelaçadas as duas imagens que largara eu na Bela Cintra. O velho eu reprovou-me alguns comportamentos da véspera – afinal, somos o mesmo e de tudo ele sabe, apesar d’eu nada saber dele – e fundimo-nos novamente e o fantasma da moça doce e frágil voltou a acompanhar-me.
Senti-me tonto. Não soube se fora a doação de sangue ou se a vista daqueles espectros. Apoiei-me num poste e esperei passar; correram-me as lágrimas pelo rosto. Como pude ser tão egoísta; de ter renegado o meu próprio sangue, desfeito-me de velhas promessas. Jamais me perdoarei.
Cabisbaixo e com os olhos marejados, voltei ao metrô.
2 Comentários:
Lírico, mesmo que com seu olhar crítico sobre si mesmo. Não vejo mais autocomiseração d'outrora, mas sim reflexão, mais leve e cristalina que a antiga repulsa de si mesmo.
Deixaste algo na esquina, espero que irrecuperável...
Fantasmas não me acompanham, pois o que almejo está muito além do jardim...
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