sexta-feira, fevereiro 24

267. Um trecho de uma biografia

D’A retalhada biografia do Vô Pepe, trabalho-em-andamento.

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Porém, a inépcia escolar e a chuva não impediram que ele servisse o exército da Espanha republicana, um bom período de tropa, mas não sei bem exatamente quanto. Sei que o mandaram servir à pátria bem longe de casa: da sonolenta e verde Galiza, foi mandando para o Tânger, o Marrocos Espanhol. Fez a travessia do braço do Mediterrâneo entre Cádiz e Ceuta com diversos outros recrutas na mesma situação dele, desalojados da Espanha inteira e chutados para o Marrocos Espanhol, a ficar de guarda contra uns tuaregues que não entendiam o que era a Democracia e o federalismo republicano espanhol e muito menos a língua de Cervantes. Evitavam juntar muitos de uma só região, então, havia no máximo três ou quatro de cada uma, mas de cidades bem distantes: um outro galego, uns três viscaínos, um catalão, um andaluz, um valenciano; isso do grupo mais próximo, pois é impossível conhecer todos os companheiros de viagem de uma embarcação militar que tem mais de 500 passageiros e com a colaboração do ruído de motores e do próprio mar.

A certa altura da travessia, anunciaram – uns dizem que foi um companheiro de viagem, outros dizem que foi o capitão ou tenente pelo alto-falante da barcaça: «Homens! A estibordo… sim, a estibordo, há algumas léguas, está o nosso rochedo, a nossa coluna de Hércules, que pertence à Espanha, mas é usurpada pela pérfida Albion: Gibraltar, Espanha irridenta! ¡Viva España!». Acreditando que tenha sido o tenente-capitão, nesse momento, cessou o chiado dos alto-falantes e o ar marítimo não encontrou uma tropa, mas umas duas, três centenas de homens perplexos, interrogando-se em silêncio, sentados no tombadilho. Alguns levantaram de improviso e correram à murada direita, aos gritos de ¡Por España! e, puseram-se a dar sonoras e grossas escarradas no mar, como se estivessem a guardar aquele muco há semanas para aquele simples ato. Logo, se levantaram vários homens e logo todos estavam à beira da murada, escarrando no mar. Evidente que com o peso de trezentos, duzentos homens, a embarcação começou a inclinar perigosamente para o lado direito. Alguém avisou, ou berrou, ou foi o alto-falante: «Voltem! Pra trás! Pra trás!» Percebendo a inclinação do barco, alguns se precipitaram a voltar, outros, junto da murada, terminaram ganhando um banho-de-mar. Assim, o frenesi patriótico terminou com uns recrutas molhados, uns outros tantos prensados, umas pernas rotas e um soldado ranzinza que observou tudo sentado sobre um rolo de corda.
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3 Comentários:

Blogger Camila Rodrigues disse...

Antes todos os frenesis patrióticos terminassem assim...

sexta-feira, fevereiro 24, 2006 1:33:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

mmm escritor?
:-)

sábado, fevereiro 25, 2006 6:59:00 da manhã  
Blogger Sérgio disse...

Camila,
Quem dera, Camila, quem dera!

Sem Cantigas,
tenta-se, tenta-se.

sábado, fevereiro 25, 2006 6:47:00 da tarde  

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