segunda-feira, fevereiro 20

264. Sono

(esse texto foi escrito há uns meses atrás, está sem revisão, mas combina muito com o dia de hoje)

Os relógios – três, eram três dentro do pequeno quarto, sincopando o estado dos ponteiros; três por segundo. Qualquer um ficaria louco, mas ele, ali, deitado na cama não. Tem um sono monolítico; quebraria uma barragem com ele; estava ali, imerso na escuridão da noite ainda não finda e nos tique-taques dos relógios, envolto fortemente nos cobertores, quando um dos mecanismos, o mais próximo, quase à cabeceira da cama tocou; o toque irritante dos despertadores electrônicos; rapidamente uma mão emergiu do escuro e acendeu o abajur, transbordando o quarto com uma luz estúpida e cegando por um segundo os olhos ligados à mão, e co-autores da façanha de ligar o interruptor.

Desanuviada a vista, desligou o despertador. Sentou-se à beira da cama e praguejou algo incompreensível; eram cinco e meia. Não que fosse excessivamente cedo, era simplesmente o horário de todo dia – útil, de fim-de-semana ele tinha o luxo de dar-se algumas horas a mais de sono. Era o horário de todo dia. Acostou-se à janela e percebeu, ainda tonteado pelo sono, que nos andares de baixo havia já movimento; largou da janela e de pijama – qual pijama? aquilo era só roupa velha – caminhou até o banheiro. Acendendo a lâmpada, deu de cara com o seu rosto cretino, relativamente inchado pela noite de sono, avermelhado, olhos também avermelhados. Examinando-se, soltou um grunhido ou talvez um gemido, nem ele mesmo sabe o que fez; chegou à conclusão que precisava de um banho, talvez para conseguir quebrar a pétrea rotina, que parecia todo dia imutável como o céu é azul. Ele geralmente tomava banho à noite, logo que chegava; morria de nojo do jornal que trazia todos os dias sob o braço, embora não conseguisse parar de comprá-lo, sujava as camisas. Com o tempo, as camisas ficavam acinzentadas sob o braço esquerdo.

Deixando a água fria cair sobre si, fazia as perguntas de todo-santo-dia: os malditos porquês que lhe infestavam a mente tal-qual uma casa velha tem baratas; mas hoje, particularmente hoje, estavam mais cheios de arestas; cortavam, eram dolorosos – baratas niqueladas!

Enxugou-se de má-vontade e o sono quase o fez estatelar-se contra o cesto de roupa suja. Dez para seis, devidamente vestido – calça, camisa, sapato, gravata – aproximou-se do fogão para aquecer o leite e lançou um olhar ao horizonte que se lhe abria amplo diante da janela – afinal, essa pocilga tem de ter alguma vantagem. O sol ainda não tingia de azul-claro o horizonte; certamente estava nublado e o dia seria uma geladeira. No andar de baixo, a vizinha já se esganiçava com as crianças e deixava cair diversas panelas entre berros absurdos. Ele sempre se aborrecia com aquele festival, todo-dia pela manhã era a mesma coisa; atribuía o escândalo e a falta de educação à origem regional diversa, eram migrantes. Sentou-se à mesa, o relógio de parede da cozinha – o quarto – marcava seis cheias. Nada do dia clarear; certamente estava muito nublado. Do andar de baixo, a mulher das panelas – ele nem sabia seu nome – gritava com o marido, arrancando-o da cama aos berros; só se entendia a palavra janela, ela queria que ele visse algo pela janela; tomava altura a sua voz irritante de eunuco, pois certamente ele pusera a cabeça para fora – gente desclassificada.

Pesava, de xícara na mão, como pudera ter se enfiado num pombal tão infecto: vizinhos barulhentos e espalhafatosos, longe de tudo. E todo dia a mesma maratona, caminhar até o metrô – afinal, ele não tinha paciência de dividir espaço no bonde com aquelas pessoas – baldeações, um emprego revoltante e as lembranças amargavam-lhe a boca; os mesmos vícios, as mesmas grosserias, parecia que os incidentes no metrô o perseguiam; hoje alguém passava mal no vagão e era necessário que o serviço de segurança viesse prestar os primeiros-socorros e se formava aquela roda de gente, ele sempre teve um profundo nojo por essa fixação mórbida que a grei tinha por desgraças e similares; ou às vezes, dois boçais que se haviam esbarrado por acidente começam a pegar-se na plataforma, necessitando também da intervenção da ordem constituída, não tão afavelmente. As mesmas decepções, anos seguidos, as mesmas rejeições, sentia-se simplesmente um pedaço de madeira, na melhor das hipóteses um autômato. O tempo tolheu-lhe as reações: antes indignava-se, ficava nervoso, batia os pés contra o chão; agora não, um torpor envolveu-lhe os dias, fica somente pensativo, com a cabeça apoiada nas mãos, a xícara de leite, como se contasse os azulejos da cozinha, enquanto sua mente lhe apresenta as velhas imagens, as velhas e amargas lembranças.

Nesse devaneio figadal imergiu-se, e de improviso despertou de sopetão com gritos. Levantou-se abruptamente e derrubou a cadeira com o impulso. Que era aquilo? Parece que os vizinhos saíram todos ao quintal do prédio e conversavam exaltadíssimos; ouvia-se a palavra Deus repetida com uma insistência irritante. Mas o que queria aquela gente? Ainda estava escuro e eram… eram dez para as oito! Cochilara. Mas não era possível que fossem dez para as oito. Estava noite ainda! Pôs a cabeça pela janela do quarto; todos os inquilinos estavam no pátio, pareciam assustadíssimos. Ele mesmo foi preso pela sensação de que algo estranho estava acontecendo, embora pouco se importasse com a reação da vizinhança. Os vizinhos o viram pela janela; encabulado pelos olhares, inventou uma desculpa: «o meu relógio atrasou, será que vocês têm horas?». «Nhor-não; atrasou não, são quase oito horas mesmo…». «Como são quase oito horas?! Vocês enlouqueceram? É noite! Na melhor das hipóteses são oito da noite, e aí seria bom, pois eu poderia dormir…». O velho de roupão, do pátio continuava, gesticulando: «Não, não! O sol não nasceu!». «Vão dormir, vocês todos precisam dormir! Isso só pode ser histeria colectiva!». Fechou a janela. Mas, de fato, eram oito em ponto e, tecnicamente ele estava atrasado. Começou a ouvir gritos esparsos, de longe. O sol não nascera: era verdade, verdade efetiva e palpável. No instante dessa constatação, bateram à porta; e quem seria no meio do caos? Abriu a porta: era a carola do primeiro andar, de véu e paramentada com escapulários, crucifixos e empunhado uma cruz de marfim. Berrava: «Seu Lopes! Acabou! É o fim! Vamos, estamos de vigília no saguão do prédio!». Ele mediu a velhinha assustada de cima a baixo. «Reze por mim, eu não posso!» e fechou a porta. A velhinha ainda insistiu e berrou umas três ou quatro vezes, mas desistiu berrando que Deus tivesse piedade da sua alma malvada e desceu para juntar-se à vigília e encomendar a sua própria alma a Deus.

A primeira reação dele foi uma ameaça de pânico: santo Deus! Talvez fosse o fim do mundo correu instintivamente até a geladeira – talvez se comesse, sobrevivesse ao cataclismo – parou diante do aparelho. Mesmo se o mundo não acabasse, ficaria tudo às escuras, logo a temperatura cairia a níveis mais-que-siberianos e seríamos dizimados pelo frio e pela fome. Apoiou-se na geladeira para não perder o equilíbrio. De fora, ave-marias e pais-nossos ecoavam de todo o canto, como se o mundo tivesse se convertido num templo imenso; aquelas velhas desdentadas comendo seus terços. Era o caos, simplesmente o caos estava ali, inexorável, entrando sem bater e deitando no sofá com os sapatos sujos. Ele sentou-se no sofá. A idéia do caos o perseguia, o caos, o caos, as pessoas correndo e trombando-se umas contra as outras pela rua; os profetas do Apocalipse provavelmente estariam exultantes, fazendo tilintar suas sinetas: eu disse, eu disse. O metrô certamente estava parado e seria o caos chegar no trabalho… mas que trabalho? E tudo se tornou claríssimo na sua mente, tanto que mesmo com os rumores incessantes do mundo externo, despiu-se, vestiu o pijama – qual pijama, homem-de-deus? – e voltou para a cama; adormecendo profundamente.

5 Comentários:

Blogger Unknown disse...

hahahhahaaa. muito bom. daria uma boa cena de filme ;]

"A primeira reação dele foi uma ameaça de pânico: santo Deus! Talvez fosse o fim do mundo correu instintivamente até a geladeira – talvez se comesse, sobrevivesse ao cataclismo – parou diante do aparelho."
hahahahhaaaaa. uma das coisas mais desconexas e engraçadas que já li na vida.

clap!clap!clap!
talento nato. a cadeira de diretor fica por minha conta ;]

segunda-feira, fevereiro 20, 2006 2:03:00 da tarde  
Blogger Camila Rodrigues disse...

Adorei.
Adoro seus temas, tipo " vizinhos insuportáveis", sabe?
Rola uma identificação...

segunda-feira, fevereiro 20, 2006 5:33:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

"deu de cara com o seu rosto cretino" gostei desta frase!
confesso que não li tudo, a intensão é de viajar não de ficar!
;-)

segunda-feira, fevereiro 20, 2006 6:25:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Lela,
Já há um pontapé de filme, então... obrigado pela cadeira. ;)

Camila,
Vizinhos insuportáveis: se você não os tem, os terá um dia...

Sem Cantigas,
Mas diga, quando nos olhamos no espelho de manhã, com a cara gorda de sono, não ficamos cretinos?

terça-feira, fevereiro 21, 2006 11:45:00 da manhã  
Blogger Mónica disse...

sim! sim! tá excelente! nem vale a pena referir "espelho" percebe-se logo!
:-)

terça-feira, fevereiro 21, 2006 1:58:00 da tarde  

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