terça-feira, fevereiro 14

262. Tio Anacleto


Em verdade, era tio-avô, mas ninguém chama tio-avô pelo título de parentesco devido, acaba virando tio tão-somente e ele faz-se distinto dos tios irmãos de pai e mãe pela idade mais avançada e pelos cabelos brancos. Tio Anacleto era meu tio-avô, tio do meu pai, irmão do meu falecido avô; hoje também tio Anacleto faz parte do grande clube dos que se foram.
Em vida, era uma personalidade assaz controversa, trabalhara como carcereiro na Polícia Civil durante os Anos de Chumbo; que histórias não teria para contar. Talvez lhe impusessem o silêncio, talvez torturasse os presos também, do que não duvido, pois quando excedia a cota na bebida, tornava-se violento. «Violento», diziam as mulheres da família; na verdade, segundo algumas outras testemunhas, nas maiores exaltações etílicas, punha-se a berrar uns palavrões e quebrar uns copos, coisas de bêbado. Não me parece que tenha socado a esposa ou espancado algum dos filhos.
Depois que se aposentou da Polícia, dedicou-se profissionalmente àquilo que tinha como passatempo: a eletricidade; tornou-se um eletricista autodidacta e de mão-cheia, talentoso realmente. Calculava resistências e metragens de fios sem o mínimo esforço e conseguia fazer com que você visualizasse todo um circuito pronto sem a mínima necessidade de papel. Disjuntores, fios, lâmpadas, fusíveis, literalmente faziam sentido quando citados pela sua voz rouca e pausada. Gostava tanto da eletricidade que quando ia testar a voltagem dos fios, nunca usava daquelas lampadinhas que usamos nós – que se acende fraco é 110 volts e se forte 220 -, simplesmente molhava os dedos com saliva e os punha nas partes desencapadas dos fios e assim revelava a voltagem à petrificada assistência, caso houvesse.
Quando meu pai construiu a casa onde moramos, ele propôs-se a realizar a parte elétrica; e fê-lo com tal primazia, que nunca, em mais de vinte anos, tivemos um único aparelho queimado pela voltagem e nas poucas vezes que a rede elétrica teve alguma oscilação perigosa, os disjuntores estalaram, livrando tudo do perigo. Nunca se queimou um único fusível.
Trabalhava com a sua paixão sempre levemente embriagado, mas com os anos, tornou-se um bêbado amável e deixou de lado os arroubos que o caracterizaram; estava sempre levemente avermelhando e cheirando a aguardente, com a barba branca a despontar-lhe pela cara como se fossem os espinhos de um cacto. Acrescente-se ainda o inseparável cigarro no canto da boca, Continental – como me parece que era o único cigarro que existia antes da Abertura Econômica, pois quase todos o fumavam. «Não sei como não explode!» ouvi minha mãe comentando certa vez, «bebe feito uma esponja». Tio Anacleto não morreu explodido e muito menos eletrocutado – como previram certas línguas ferinas – e nem o tão preconizado tombo, visto que ele ia fazer as instalações elétricas e eventualmente para tal, trafegava por calhas, telhados e beirais, mas morreu agonizando, preso a uma cama, dominado por um câncer pulmonar que se alastrara pela coluna vertebral.

Nota à postagem 260
Um erro de tradução acabou por trazer um novo conceito, uma nova categoria. La noia que s'ha posat a ballar do Serrat, traduzi o título da música erroneamente, acabei por ser induzido pelo italiano, idioma no qual noia quer dizer tédio, fastio. Então, o enfado que se pôs a bailar, o enfado dançante passa a ser um conceito puramente venardiano, se é que posso adjetivar-me desse modo. Noia em catalão significa criança pequena, mocinha impúbere, ou mocinha púbere que inda mantém sua virgindade, segundo o excelso Dicionário do Instituto de Estudos Catalães.