243. Entrevista
Republicação. O presente texto foi publicado neste blogue em março de 2005.
O conde partido ao meio (entrevista).
O lado direito – o mais malvado – do Conde, que já se pensava morto, está vivíssimo e em visita pela região do monte Pyhä, na Finlândia e foi reconhecido pelo jornalista Paavo Läkkinen, locutor da rádio Voz de Sodankylä (da cidade mas próxima, ao norte do monte) e editor-chefe do jornal local, a Gazeta de Sodankylä. Apesar da fama de mal humorado, o meio-Conde concedeu uma entrevista para Läkkinen na rádio, posteriormente transcrita no jornal.
É um prazer tê-lo conosco, Conde, nem que seja uma fração; visitando essas paragens esquecidas da Finlândia, e o que mais me surpreendeu, num finlandês impecável!
Eu que agradeço, Paavo, a honra de poder falar nos seus microfones, nem que seja com uma fração dos meus dentes e eu nem possa morder a sua mão. Oportunidade realmente única; só não sei o que você quer saber de mim, já que nada tenho para falar. (risos).
Então eu puxo um assunto; o senhor, que é um renomado literato do seu país, o que acha de Shakespeare?
Você foi extremamente irônico, visto que sou o único literato do meu país, o meu país é móvel, é sempre a área de cinco metros ao redor de mim (risos). É difícil que outro literato entre no meu perímetro (risos). Shakespeare é um bom dramaturgo, certo que não chegue à altura de Gil Vicente, mas é bom, seu único e grande problema, é ter escrito em inglês, língua que além de problemática e pobre, vocabulariamente falando, tem o agravante de ser dilacerada por pronúncias horrorosas, como a canadense e a americana…
Por que tanta bronca da língua inglesa? E qual seria a melhor pronúncia do inglês, já que o senhor mostra antipatia pela pronúncia das Américas?
Línguas que não têm diacríticos não são confiáveis. Fora ser a língua dum país onipotente e sem nome. Quem pode confiar na língua duma superpotência que não tem nome?
Não tem nome? Como?
Os Estados-Unidos! Esse país-bestião! Estados-Unidos da América por acaso é nome de país? Espanha, Portugal e França, por exemplo são nomes de países. Agora um nome que contém a forma de governo e o nome do Continente; afinal, nós cá também somos América! Quanto à pronúncia do inglês, Charles Aznavour tem a melhor pronúncia que eu conheço; assim como a melhor pronúncia do francês é de Amália Rodrigues. Ela cantando La vie en rose é magnífico; voltando à pronúncia do inglês, tenho minhas preferências ao Benigni Pattern. E há ainda o Inglês da Rainha. Dos males, os menores.
Analisando a última resposta, vê-se claramente o seu eurocentrismo; por que?
Na minha infância, a terra do ouro preconizada pelos meus mais próximos era a Europa; porém, o peso cultural do Velho Mundo terminou por se tornar uma mala que arrasto onde vou; tenho ojeriza aos nossos vizinhos territoriais – e ainda bem que estamos longe das fronteiras (risos); estabeleci meus laços culturais com a Europa, principalmente a Europa Mediterrânea, latina, certamente.
O senhor disse Europa latina e mediterrânea; mas há alguns dias, o senhor fez – em público, num bistrô em Angoulême – uma apologia ao colonialismo inglês, não é verdade?
Sim, sim, é verdade. O assunto surgiu quando conversava com dois velhos amigos, Daniel Séchard e Antoine Chardon, a Índia, por acaso entrou na pauta da conversa. Por mais que haja ioga [o «o» de ioga foi pronunciado enfaticamente aberto] e budismo e outras tralhas… orientalizantes, continua sendo um país que me inspira repulsa. Vacas cagando para todo lado e sendo tratadas como reis; vacas na minha concepção não passam de um amontoado de bifes que pastam. E talvez seja pela falta de higiene dos indianos – o fato de comerem com a mão, limparem-se com a mão [uma careta de nojo] e as ruas de Nova Déli terem um odor insuportável! É por isso que os ingleses nem calçada queriam dividir com os indianos. Justo!
Mas essa é uma posição muito polêmica…
Ora, Paavo! O que mais me enoja nos dias de hoje não são as posições polêmicas; mas sim esse falso bom-mocismo que impera hoje. As pessoas escondem suas idéias hoje mas as destilam todas do mesmo jeito, às escondidas. O Homem seria muito melhor se vivesse mais para si e sua colectividade isolada ao invés de ir meter o bedelho no que dizem os outros, a respeito do que quer que seja.
Inclusive a defesa do colonialismo?
Sim, inclusive; o colonialismo europeu à moda antiga. Essa história de domínio econômico é colonialismo de maricas, de moçoilas. Tem de ser viril e másculo para pôr em vigor um domínio político e directo; chamar determinado território de colônia ou protectorado. As antigas colônias européias em África, por exemplo, talvez tivessem mais mobilidade do que nós, uma republica «independente», mas presa a compromissos econômicos absurdos com órgãos financeiros internacionais. Quanto ao colonialismo, (pigarreia) há certas regiões do globo que não há solução; meu caro, veja o caso da África – é um barril de pólvora, foi só os europeus começarem a retirar-se que os velhos… tribalismos voltaram à tona e jogaram a região no caos e guerras endêmicas, salvo pequenas exceções. Embora parte disso – sejamos honestos – foi causado pela arbitrariedade das fronteiras, (pausa) é só ver como elas, em várias partes são retas. (gesticula traçando uma reta no ar) As fronteiras uniram povos inimigos e separam outros povos; e isso se transpõe à política: guerras civis, como a de Biafra na década de 1970, a separação da Eritréia. Talvez fosse necessária a permanência dos Europeus mais algum tempo em África. Sinto que a Finlândia não tenha podido, com toda sua pujança cultural, ter tido colônias, ao contrário, ter ficado tanto tempo não mão dos suecos e dos russos…
E o que o senhor quer dizer com tudo isso?
(sorri ironicamente) Que a idéia que todos os povos têm o mesmo nível de desenvolvimento intelectual e cultural é uma grande balela; veja a música européia, ocidental do século XIX. A Ásia continuava com suas monótonas toadas pentatônicas, a África com seus batuques e percussões; isso de igualar as culturas é um traço perigoso (engrossa a voz) do bom-mocismo. Veja também no nosso país, na nossa grande Pátria-Mãe; iniciativas culturais para os carentes resumem-se em ensiná-los a batucar em latas e fazer malabares e eu pergunto para você: onde isso tudo termina? Nos semáforos, ao invés de venderem balas, macaqueiam com bastões ou engolem fogo…
Então o senhor critica duramente essas iniciativas culturais?
Culturais?! (ri) Não me faça rir! Certamente; são iniciativas inúteis. Precisamos de escritores, de oradores, de bons políticos, de homens de governo, de estadistas; e em breve seremos uma nação de circenses e atendentes de telemarketing. Pão e circo; é isso que querem as elites; por isso o apoio extra-oficial do Poder Público; mantendo o proletariado ocupado com malabares e batuques, as oligarquias reinantes e a elite burguesa podem continuar mandando e desmandando, à revelia da população. Devem ensinar nossas crianças a ler Camões desde pequenas, não fazer como fazem, por Os Lusíadas como uma obra intransponível e dar-lhes de ler versões proseadas! Por favor, isso me enoja! (faz um careta de nojo) O cidadão deve ser educado a ponto de poder entender o que está lendo; hoje não, simplesmente pula-se; como se Camões nada representasse.
Mas Camões é literatura portuguesa… não seria melhor criar as crianças sob a cultura brasileira?
A cultura brasileira é uma quimera, meu caro! Somos ainda portugueses ultramarinos sem identidade; queremos abandonar a Europa, mas não temos nada para substituir; por isso o actual vazio cultural, essa música de bordel que se desenvolveu… e somos péssimos brasileiros justamente por que tentamos nos livrar de uma herança que nos é um tesouro, embora certos eurofóbicos vejam-na como um empecilho; é a minha mala… somos uma civilização, querendo ou não, luso-brasileira; e a idéia do antigo Reino Unido [não o inglês, mas a monarquia dual Portugal-Brasil] de 1815 não seja tão má idéia assim.
Mas, música de bordel? Que música de bordel?!
Esse dito Axé, de altíssima conotação sexual. Música para ser boa não precisar ter duplo sentido! Porém, o povo emburrecido somente dá atenção e diz gostar dessa música de péssima qualidade, esses axés, música sertanejas – não a de raiz, veja bem, mas essa música sertaneja urbana, desculpe-me o baixo linguajar, essa dor-de-corno diarréica. Gira-se o selector do rádio, ei-las todas lá, uma rádio pior que a outra; e o Poder Público, ao invés de tentar mudar essa situação por políticas culturais, senta em cima. Recentemente fecharam a Sinfonia Cultura. Onde já se viu fechar uma Orquestra?!
O senhor citou há pouco os atendentes de telemarketing. Qual o seu problema com eles?
Na verdade; seria: qual o problema deles conosco? Com um curso ridículo de vendas – essa palavra também me enoja enormemente – crêem-se onipotentes sobre o seu interlocutor; passam a acreditar que com a insistência, o interpelado irá comprar o produto oferecido. O que poucos sabem é o ódio que inspira a insistência; principalmente a invasão causada pelo telefone. Interrompem sua leitura, seu jantar. Sei que isso é muito individualismo, e que o individualismo é causa de muitos senão de todos os males da nossa sociedade; mas sentem-se no direito de falar-lhe à sua revelia! Despejam uma centena de palavras sobre você, rapidamente – o intuito é confundir e não deixar que você raciocine; sei porque tive, certa feita, de freqüentar um desses famigerados cursos; esse é um comportamento que se baseia na igualdade comportamental dos seres humanos; o que é tão mentiroso quanto acreditar que exista uma raça ariana ou que o ser humano foi gerado desde Adão e Eva…
O senhor é ateu ou agnóstico? Essa é uma pergunta que aflige seus leitores, visto que contradiz as Escrituras…
As Escrituras para mim são literatura; ótimo como literatura. Inclusive, para entender certas obras, é necessário ter conhecimento dos Livros Sagrados; próprio como disse Borges certa vez, indagado de qual era seu livro predileto – se não me falha a memória – disse que era a Bíblia. Indagado do porquê, respondeu sabiamente: «porque a Bíblia é o único lugar onde se passa das uvas ao porre em três versículos»; e quanto ver a Bíblia como literatura, tomo partido de Borges; a Bíblia é base dos escritores da Cristandade, pois bem ou mal, a Civilização Européia gerou-se sob a égide da religião cristã; católica ou protestante, pouco importa.
E sobre a religião em si, qual a sua opinião?
Quando do ponto de vista espiritual, a religião é totalmente descartável, o Homem não precisa disso para viver; e corresponde somente a um clamor interno e primitivo frente a uma realidade inexplicável; porém, há o outro lado da moeda, o lado do mecenato que exerceu a Igreja. Se não fosse ela, o Coliseu não existiria mais; não haveria a Basílica de São Pedro, e tantas outras obras de arte pictóricas e arquitectônicas. Enquanto os comunistas – embora simpatize muito com eles – saíram pela Rússia a destruir igrejas…
Falando em posicionamento político, o senhor acabou de declarar simpatia pelo comunismo, pode especificar, detalhar-nos mais?
Sou pela linha do socialismo; embora nada tenha lido de Marx ou Engels, simpatizo com Lênin, principalmente no seu livro Ditadura do proletariado e poder soviético. Muitas pessoas criticam o socialismo, porque não o conhecem ou conhecem somente o lado ruim da sua aplicação na Europa Oriental. Aplicação parcial: aspectos bons e ruins. E pelos aspectos ruins, resolveu o povo daquela região abdicar de todas quantas suas conquistas para poder comprar bugigangas e atravessar fronteiras; a maldita comichão que ataca os seres humanos quando estão bons e quietos.
E quanto aos problemas contemporâneos que o senhor elenca; como a desinformação geral e a falta de interesse da população por assuntos culturais?
É culpa da nossa retrocultura argentária; enquanto o mundo girar em torno do dinheiro, não há chance de recuperação.
Bem, nosso tempo esgotou-se e eu gostaria de agradecer a presença nos nossos estúdios do Conde De Venardis, ou melhor, de parte dele. Muito obrigado, Conde.
Eu que agradeço a oportunidade. E aproveitando que você está tão solícito, você não saberia qual o horário do próximo trem para Helsinque, saberia? Aqui faz muito frio… e meio-Conde será por enquanto, pois estou vendo com um médico austríaco a cirurgia de reconstrução da outra metade do meu corpo… ou você acha que eu quero voltar para São Paulo e continuar a ser um bancário estúpido com aquele meu eu-esquerdo, tão bonzinho que dá ânsia de vômito? Nem morto! Arrivederci, para você, seus pés gelados e sua cara vermelha! Lapões…
O conde partido ao meio (entrevista).
O lado direito – o mais malvado – do Conde, que já se pensava morto, está vivíssimo e em visita pela região do monte Pyhä, na Finlândia e foi reconhecido pelo jornalista Paavo Läkkinen, locutor da rádio Voz de Sodankylä (da cidade mas próxima, ao norte do monte) e editor-chefe do jornal local, a Gazeta de Sodankylä. Apesar da fama de mal humorado, o meio-Conde concedeu uma entrevista para Läkkinen na rádio, posteriormente transcrita no jornal.
É um prazer tê-lo conosco, Conde, nem que seja uma fração; visitando essas paragens esquecidas da Finlândia, e o que mais me surpreendeu, num finlandês impecável!
Eu que agradeço, Paavo, a honra de poder falar nos seus microfones, nem que seja com uma fração dos meus dentes e eu nem possa morder a sua mão. Oportunidade realmente única; só não sei o que você quer saber de mim, já que nada tenho para falar. (risos).
Então eu puxo um assunto; o senhor, que é um renomado literato do seu país, o que acha de Shakespeare?
Você foi extremamente irônico, visto que sou o único literato do meu país, o meu país é móvel, é sempre a área de cinco metros ao redor de mim (risos). É difícil que outro literato entre no meu perímetro (risos). Shakespeare é um bom dramaturgo, certo que não chegue à altura de Gil Vicente, mas é bom, seu único e grande problema, é ter escrito em inglês, língua que além de problemática e pobre, vocabulariamente falando, tem o agravante de ser dilacerada por pronúncias horrorosas, como a canadense e a americana…
Por que tanta bronca da língua inglesa? E qual seria a melhor pronúncia do inglês, já que o senhor mostra antipatia pela pronúncia das Américas?
Línguas que não têm diacríticos não são confiáveis. Fora ser a língua dum país onipotente e sem nome. Quem pode confiar na língua duma superpotência que não tem nome?
Não tem nome? Como?
Os Estados-Unidos! Esse país-bestião! Estados-Unidos da América por acaso é nome de país? Espanha, Portugal e França, por exemplo são nomes de países. Agora um nome que contém a forma de governo e o nome do Continente; afinal, nós cá também somos América! Quanto à pronúncia do inglês, Charles Aznavour tem a melhor pronúncia que eu conheço; assim como a melhor pronúncia do francês é de Amália Rodrigues. Ela cantando La vie en rose é magnífico; voltando à pronúncia do inglês, tenho minhas preferências ao Benigni Pattern. E há ainda o Inglês da Rainha. Dos males, os menores.
Analisando a última resposta, vê-se claramente o seu eurocentrismo; por que?
Na minha infância, a terra do ouro preconizada pelos meus mais próximos era a Europa; porém, o peso cultural do Velho Mundo terminou por se tornar uma mala que arrasto onde vou; tenho ojeriza aos nossos vizinhos territoriais – e ainda bem que estamos longe das fronteiras (risos); estabeleci meus laços culturais com a Europa, principalmente a Europa Mediterrânea, latina, certamente.
O senhor disse Europa latina e mediterrânea; mas há alguns dias, o senhor fez – em público, num bistrô em Angoulême – uma apologia ao colonialismo inglês, não é verdade?
Sim, sim, é verdade. O assunto surgiu quando conversava com dois velhos amigos, Daniel Séchard e Antoine Chardon, a Índia, por acaso entrou na pauta da conversa. Por mais que haja ioga [o «o» de ioga foi pronunciado enfaticamente aberto] e budismo e outras tralhas… orientalizantes, continua sendo um país que me inspira repulsa. Vacas cagando para todo lado e sendo tratadas como reis; vacas na minha concepção não passam de um amontoado de bifes que pastam. E talvez seja pela falta de higiene dos indianos – o fato de comerem com a mão, limparem-se com a mão [uma careta de nojo] e as ruas de Nova Déli terem um odor insuportável! É por isso que os ingleses nem calçada queriam dividir com os indianos. Justo!
Mas essa é uma posição muito polêmica…
Ora, Paavo! O que mais me enoja nos dias de hoje não são as posições polêmicas; mas sim esse falso bom-mocismo que impera hoje. As pessoas escondem suas idéias hoje mas as destilam todas do mesmo jeito, às escondidas. O Homem seria muito melhor se vivesse mais para si e sua colectividade isolada ao invés de ir meter o bedelho no que dizem os outros, a respeito do que quer que seja.
Inclusive a defesa do colonialismo?
Sim, inclusive; o colonialismo europeu à moda antiga. Essa história de domínio econômico é colonialismo de maricas, de moçoilas. Tem de ser viril e másculo para pôr em vigor um domínio político e directo; chamar determinado território de colônia ou protectorado. As antigas colônias européias em África, por exemplo, talvez tivessem mais mobilidade do que nós, uma republica «independente», mas presa a compromissos econômicos absurdos com órgãos financeiros internacionais. Quanto ao colonialismo, (pigarreia) há certas regiões do globo que não há solução; meu caro, veja o caso da África – é um barril de pólvora, foi só os europeus começarem a retirar-se que os velhos… tribalismos voltaram à tona e jogaram a região no caos e guerras endêmicas, salvo pequenas exceções. Embora parte disso – sejamos honestos – foi causado pela arbitrariedade das fronteiras, (pausa) é só ver como elas, em várias partes são retas. (gesticula traçando uma reta no ar) As fronteiras uniram povos inimigos e separam outros povos; e isso se transpõe à política: guerras civis, como a de Biafra na década de 1970, a separação da Eritréia. Talvez fosse necessária a permanência dos Europeus mais algum tempo em África. Sinto que a Finlândia não tenha podido, com toda sua pujança cultural, ter tido colônias, ao contrário, ter ficado tanto tempo não mão dos suecos e dos russos…
E o que o senhor quer dizer com tudo isso?
(sorri ironicamente) Que a idéia que todos os povos têm o mesmo nível de desenvolvimento intelectual e cultural é uma grande balela; veja a música européia, ocidental do século XIX. A Ásia continuava com suas monótonas toadas pentatônicas, a África com seus batuques e percussões; isso de igualar as culturas é um traço perigoso (engrossa a voz) do bom-mocismo. Veja também no nosso país, na nossa grande Pátria-Mãe; iniciativas culturais para os carentes resumem-se em ensiná-los a batucar em latas e fazer malabares e eu pergunto para você: onde isso tudo termina? Nos semáforos, ao invés de venderem balas, macaqueiam com bastões ou engolem fogo…
Então o senhor critica duramente essas iniciativas culturais?
Culturais?! (ri) Não me faça rir! Certamente; são iniciativas inúteis. Precisamos de escritores, de oradores, de bons políticos, de homens de governo, de estadistas; e em breve seremos uma nação de circenses e atendentes de telemarketing. Pão e circo; é isso que querem as elites; por isso o apoio extra-oficial do Poder Público; mantendo o proletariado ocupado com malabares e batuques, as oligarquias reinantes e a elite burguesa podem continuar mandando e desmandando, à revelia da população. Devem ensinar nossas crianças a ler Camões desde pequenas, não fazer como fazem, por Os Lusíadas como uma obra intransponível e dar-lhes de ler versões proseadas! Por favor, isso me enoja! (faz um careta de nojo) O cidadão deve ser educado a ponto de poder entender o que está lendo; hoje não, simplesmente pula-se; como se Camões nada representasse.
Mas Camões é literatura portuguesa… não seria melhor criar as crianças sob a cultura brasileira?
A cultura brasileira é uma quimera, meu caro! Somos ainda portugueses ultramarinos sem identidade; queremos abandonar a Europa, mas não temos nada para substituir; por isso o actual vazio cultural, essa música de bordel que se desenvolveu… e somos péssimos brasileiros justamente por que tentamos nos livrar de uma herança que nos é um tesouro, embora certos eurofóbicos vejam-na como um empecilho; é a minha mala… somos uma civilização, querendo ou não, luso-brasileira; e a idéia do antigo Reino Unido [não o inglês, mas a monarquia dual Portugal-Brasil] de 1815 não seja tão má idéia assim.
Mas, música de bordel? Que música de bordel?!
Esse dito Axé, de altíssima conotação sexual. Música para ser boa não precisar ter duplo sentido! Porém, o povo emburrecido somente dá atenção e diz gostar dessa música de péssima qualidade, esses axés, música sertanejas – não a de raiz, veja bem, mas essa música sertaneja urbana, desculpe-me o baixo linguajar, essa dor-de-corno diarréica. Gira-se o selector do rádio, ei-las todas lá, uma rádio pior que a outra; e o Poder Público, ao invés de tentar mudar essa situação por políticas culturais, senta em cima. Recentemente fecharam a Sinfonia Cultura. Onde já se viu fechar uma Orquestra?!
O senhor citou há pouco os atendentes de telemarketing. Qual o seu problema com eles?
Na verdade; seria: qual o problema deles conosco? Com um curso ridículo de vendas – essa palavra também me enoja enormemente – crêem-se onipotentes sobre o seu interlocutor; passam a acreditar que com a insistência, o interpelado irá comprar o produto oferecido. O que poucos sabem é o ódio que inspira a insistência; principalmente a invasão causada pelo telefone. Interrompem sua leitura, seu jantar. Sei que isso é muito individualismo, e que o individualismo é causa de muitos senão de todos os males da nossa sociedade; mas sentem-se no direito de falar-lhe à sua revelia! Despejam uma centena de palavras sobre você, rapidamente – o intuito é confundir e não deixar que você raciocine; sei porque tive, certa feita, de freqüentar um desses famigerados cursos; esse é um comportamento que se baseia na igualdade comportamental dos seres humanos; o que é tão mentiroso quanto acreditar que exista uma raça ariana ou que o ser humano foi gerado desde Adão e Eva…
O senhor é ateu ou agnóstico? Essa é uma pergunta que aflige seus leitores, visto que contradiz as Escrituras…
As Escrituras para mim são literatura; ótimo como literatura. Inclusive, para entender certas obras, é necessário ter conhecimento dos Livros Sagrados; próprio como disse Borges certa vez, indagado de qual era seu livro predileto – se não me falha a memória – disse que era a Bíblia. Indagado do porquê, respondeu sabiamente: «porque a Bíblia é o único lugar onde se passa das uvas ao porre em três versículos»; e quanto ver a Bíblia como literatura, tomo partido de Borges; a Bíblia é base dos escritores da Cristandade, pois bem ou mal, a Civilização Européia gerou-se sob a égide da religião cristã; católica ou protestante, pouco importa.
E sobre a religião em si, qual a sua opinião?
Quando do ponto de vista espiritual, a religião é totalmente descartável, o Homem não precisa disso para viver; e corresponde somente a um clamor interno e primitivo frente a uma realidade inexplicável; porém, há o outro lado da moeda, o lado do mecenato que exerceu a Igreja. Se não fosse ela, o Coliseu não existiria mais; não haveria a Basílica de São Pedro, e tantas outras obras de arte pictóricas e arquitectônicas. Enquanto os comunistas – embora simpatize muito com eles – saíram pela Rússia a destruir igrejas…
Falando em posicionamento político, o senhor acabou de declarar simpatia pelo comunismo, pode especificar, detalhar-nos mais?
Sou pela linha do socialismo; embora nada tenha lido de Marx ou Engels, simpatizo com Lênin, principalmente no seu livro Ditadura do proletariado e poder soviético. Muitas pessoas criticam o socialismo, porque não o conhecem ou conhecem somente o lado ruim da sua aplicação na Europa Oriental. Aplicação parcial: aspectos bons e ruins. E pelos aspectos ruins, resolveu o povo daquela região abdicar de todas quantas suas conquistas para poder comprar bugigangas e atravessar fronteiras; a maldita comichão que ataca os seres humanos quando estão bons e quietos.
E quanto aos problemas contemporâneos que o senhor elenca; como a desinformação geral e a falta de interesse da população por assuntos culturais?
É culpa da nossa retrocultura argentária; enquanto o mundo girar em torno do dinheiro, não há chance de recuperação.
Bem, nosso tempo esgotou-se e eu gostaria de agradecer a presença nos nossos estúdios do Conde De Venardis, ou melhor, de parte dele. Muito obrigado, Conde.
Eu que agradeço a oportunidade. E aproveitando que você está tão solícito, você não saberia qual o horário do próximo trem para Helsinque, saberia? Aqui faz muito frio… e meio-Conde será por enquanto, pois estou vendo com um médico austríaco a cirurgia de reconstrução da outra metade do meu corpo… ou você acha que eu quero voltar para São Paulo e continuar a ser um bancário estúpido com aquele meu eu-esquerdo, tão bonzinho que dá ânsia de vômito? Nem morto! Arrivederci, para você, seus pés gelados e sua cara vermelha! Lapões…
1 Comentários:
Fez-me lembrar de uma peça célebre: Glenn Gould interviews Glenn Gloud about Glenn Gould. Isso dá samba (sic).
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