O primeiro e último céu de São Paulo
Mañana es solo un advérbio de tiempo.
(De Cartón piedra, Joan Manuel Serrat)
Tarde de outono. O sol moribundo ainda derrama uma luz diáfana, abóbora, primitiva sobre os objetos, produzindo um opaco jogo de sombra-e-luz. O ocaso tampa uma cidade onde todos vivem única e exclusivamente por si, onde pessoas de pensamento rastejante pululam dos seus escritoriozinhos para suas casa; escritórios cujas divisórias têm nomes apropriadíssimos como baia (onde se põe os cavalos) ou células, colectivas, onde funcionários-vacuolos-digestivos fagocitam-se com humor grosseiro de botequim.
São ambientes impróprios, senão proibitivos para qualquer tipo de raciocínio, pois parece ser habitado por esses já citados funcionários que trabalham e têm com alguém que lhes fala algo a mesma reação que teria uma samambaia. E olhando a ladeira General Carneiro, desde o Parque Dom Pedro, aquele mar de cabeças ou subindo ou descendo, as formigas acéfalas.
Por trás de preceitos politicamente-correcto (que parece ser o pensamento dominante hoje), mantêm-se a grei submissa e amedrontada, num país onde a bandalheira corre solta e, segundo o adágio popular, onde “o exemplo vem de cima”. Mantêm-se os cérebros inoperantes pela ausência de cultura (não me venham com exemplos do cinema, visto que a maioria dos filmes são de manipulação das massas, principalmente os estadunidenses).
Além da já centenária cultura do trabalho imposta, “o trabalho dignifica” e o diabo-a-quatro; isso certamente foi algum aristocrata que inventou o bordão, antes da Revolução Francesa, assim a choldra ignara pode acreditar que disso sai algo. Vistas as actuais condições de trabalho no geral, nos filões de emprego, este se tornou algo extremamente aviltante e pouco digno, principalmente pela falta de opção e o fato de ter-se de agarrar à primeira vaga que aparece. E como tudo gira ao redor do dinheiro, esse mercantilismo vomitivo provocado pelo consumismo desenfreado, de nós, primatas vaidosos, gerou toda uma cadeia de empregos odiosos: atendentes de telemarketing (porque o senhor não quer o cartão? et coetera e tal), “colaboradores” (leia-se vendedores chatos e insistentes), pesquisadoras, e hoje até fui surpreendido por um truquezinho muito sem-vergonha do Citibank; deram-nos uma barrinha de chocolate à porta do escritório (e já dentro das catracas!) e um cupom para preencher com seus dados pessoais para ganhar uma cesta de café-da-manhã assaz mequetrefe, a idéia é conseguir seus dados para começar aquela aporrinhação de vender cartão de crédito por telefone. Maldito quem inventou o cartão de crédito; e Graham Bell também deve estar nas profundezas do inferno.
Eu juro que tenho medo de ver como estará o mundo daqui a dez anos; por isso não tenho coragem sequer de pensar em ter rebentos. Faço questão de ser intragável e extremamente cínico, de humor ácido e destrutivo nesse mundo de sorrisos remunerados; realmente, eu quero que o mundo se exploda e o circo pegue fogo, pois, “amanhã é só um advérbio de tempo”, e o sol, o mesmo de milhões de anos, que aparece no céu todos os dias para nos lembrar da nossa efemeridade, continuará, apesar de tudo, brilhando abóbora nas tardes de outono.
5 Comentários:
Os créditos da luz abóbora vão para... a ausência de fluoxetina, o ozônio, o monóxido, o particulado. Evviva!
Eu já falei da fluoxetina pro Sérgio, mas ele não acredita!
Sérgio, acho que a Adriana é do Chile... Se não for, ela é do Peru.
Beijos
PSIU: COmo você escreve bem!
Fátima
essas formigas acéfalas nos obrigam a cumprir expediente e bater cartão. estão infelizes, mas nos desejam o mesmo sem saber o quanto estão nos ferindo.
estou num dos piores momentos da minha vida. prefiro a fúria capitalista, prefiro contas a pagar do que ter que ouvir "só queremos a sua felicidade" me puxando pra uma realidade que não é a minha. e que eu estou farta de abominar.
Quem inventou o trabalho não tinha mais o que fazer.
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