quarta-feira, junho 1

Inverno

— Opsânitza! Levante-se, já passam das nove!
Opsânitza abriu os olhos; era sábado. Todo dizer entrava na sua cabeça e ecoava, sentia que nada lhe ficara, somente um certo amargor, rancores, lodo cerebral.
— Nove…? nove? – ficou olhando para o teto.
— Vamos; tem de limpar a neve da porta, senão o Mihai não consegue entrar com a Zastevo (1); vamos, eu te dou uma mão. Ou vai esperar que o marechal (2) venha nos ajudar?
Sentou-se na cama e coçou os olhos avermelhados.
— Recomendo que ponha uma roupa mais pesada – recomendou Martinovic –, pois vai frio.
Trocou-se e pegou a pá, seguindo Martinovic. Estava angustiado, agora era o peso das obrigações contraídas com a sociedade.
— Então, - disse Martinovic, enquanto enfiava a pá na neve, e praticamente não se via o seu rosto – e o teu trabalho de Contabilidade, já terminou?
— Que?
— O trabalho que você disse que tinha de terminar…
— Ah… Martinovic, você não é a minha mãe, pois se fosse, já tinha mandado ir se ferrar… ou dado um golpe de pá.
— Opa, não está mais aqui quem falou… mas epa!, onde você está indo? Opsânitza, volta aqui, meu!
Yuri Opsânitza, pôs a pá às costas e começou a afastar-se pela rua. Algumas quadras depois, quase fora do perímetro urbano, achou um paquímetro.
— Estúpido! - rugiu. E com um só golpe lançou-o da calçada para o meio da rua, aspergindo moedas de um dinar pela neve. Ninguém viu, a rua estava deserta. Continuou andando como se nada houvesse ocorrido, logo estava na trilha do bosque; sentia o coração oprimido; parou e sentou-se na base de um grande olmeiro (3). Mesmo com as pesadas luvas, tirou da algibeira do sobretudo um lápis tosco e um surrado caderno de anotações com a efígie do Marechal Tito (4), monocromática em azul, como nos selos de quinze dinares (5).
— Idiota. Como tudo e todos nesse país. Todos idiotas, do Marechal às árvores, passando pelos sérvios, croatas e eslovenos e o diabo-a-quatro que tenha nesse país pestífero; o mundo é pestífero! – Levantou-se e deu uma pazada no olmeiro, que de sua petricidade centenária nem se moveu, porém o baque fez Opsânitza estremecer. Recuperado do tremor da pancada, recolheu o lápis e a caderneta que lhe haviam caído longe e sentou-se novamente. Começou a redigir.

«28 de dezembro.

O gosto do dente, a Coluna da Glória, Glória cantado nas igrejas, Tchaikovskij, o lago dos Cisnes, os cisnes sujos, o Horto de Zagreb, o Parque do Danúbio. O homem que vive de recordos, que vive de ilusões, gordas e sebosas como porcos confundidos com cavalos, o seu pêlo seboso refulge como a vitória; os louros que não existem como eu os queria, mas que somente dão gosto à sopa, sopa que dá mau hálito e gases, coisas que os manuais de etiqueta não recomendam – maldito Galateo, «stomachevole» - é a vida que patina na lama da água, há séculos estagnada, a era do paludismo; somos todos animais de brejo: mosquitos, larvas, moscas, vermes, minhocas e sanguessugas. Maus tempos vão.
-
Ontem foi o meu seminário de Contabilidade Aplicada. Ontem eu tomei café de máquina no fim da rampa da Faculdade, a 25 para (6). Ontem, o carro de som, «voluntário e popular» continuava a anunciar os louvores do povo iugoslavo a Tito (ou a algum outro General) como se anunciasse o Juízo Final. E talvez seja o Juízo Final. Talvez o Juízo já tenha ido; o meu eu tenho certeza que já foi há muito, somente quem não tem juízo (no sentido normativo, didáctico, prescritivo, eclesiástico e canônico) consegue pensar; mas como sou novo e medíocre no mestiere, cada sinapse interligada é uma nova dor, uma nova dura consciência, com suas implicações tristonhas e malvadas.
Queria ficar quieto, eu e meu travesseiro, meu mundo onírico, eu e meus lençóis trasmutados em rios, planícies verdes, cidadezinhas pequenas; sem peso, sem dor, sem angústias estúpidas. Ontem, reergui os olhos do chão, dei de cara com o viaduto Mladenic. Mundos que se sobrepõe, e que obra de arte aquelas vigas, cujos detalhes transformados em ângulos losangos, acompanham tanto o traçado da rua Novi Sad quanto a do próprio viaduto que sustêm.
Como é assutadora a beleza de certas moças que têm cabelos dispostos como se estivessem num quadro, que cada movimento seu é uma ode ao belo. Como é trêmula a mão de Marija Hakumovic quando está sob seminário; como esclarecem as sobrancelhas arquejantes do sábio mestre, por de trás das grossas lentes. Como o sono é uma instituição humana e universal, assim como a loucura, o amor e o ódio. Como são odiosos os da Juventude Comunista.
Mas que diabo de mundo. Cansou-me a linearidade do tempo e dos fatos narrados num diário como se estivessem no jornal ou no Diário Oficial; colho o que me interessa, escolho as sensações como quem colhe limões aleatoriamente. Chega de narrações burocráticas, lineares, unidirecionais e comezinhas. Limpem-se com os relatórios, forrem os tetos com notas fiscais, façam papel-machê com os títulos das companhias estatais, não ligo; toquem guzla na fila do hospital; não ligo, tudo se rege pelo tempo, dou-me o direito de parecer atemporal.»

Opsânitza parou e olhou as páginas garatujadas; adiante, viu a pá afundada na neve e com um grito, pegou-a, sovou a neve em volta centenas de vezes, quando se cansou, com as veias do pescoço quase saltando, jogou a pá no barranco próximo.

Notas

(1) marca de automóvel de algum país do Leste Europeu, não sei exatamente nem de qual país é, nem que tipo de carro é (se sedan ou wagon); lembro-me de ter visto o nome numa fotografia de uma carroça de ciganos, e na madeira carcomida, um logotipo de automóvel, é era a Zastevo. Usa-se aqui no sentido de van.
(2) Tito?
(3) Não, nunca vi um olmeiro e nem sei se há deles na Iugoslávia, sei que são do hemisfério norte.
(4) Sim, é o Tito.
(5) Quinze? Talvez fosse no de vinte.
(6) para é a centésima parte do dinar.

3 Comentários:

Blogger Érico disse...

Texto alegórico, em que a neve e o carro antigo me fazem lembrar Volgogrado em 1953...

sexta-feira, junho 03, 2005 3:27:00 da tarde  
Blogger Jeferson Ferreira disse...

Dá uma procurada nesses sons, acho q vc vai gostar: Francesco Viscomi – Serenata spagnola
Idem e Danza del correggidor

sexta-feira, junho 03, 2005 4:43:00 da tarde  
Blogger Orlando Tosetto Júnior disse...

O senhor fez a prova do Tchesquino em companhia do Marchesino, mas lamentavelmente esqueceu-se de nela apor seu número estudantil. FYI.

domingo, junho 05, 2005 11:05:00 da tarde  

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