Diários de viagem (II)
Profissão: taxista e biólogo
Ao pôr os pés sobre o chão, a quase 1.000 quilômetros de casa, tive a impressão de estar no espaço, pois jamais vira eu noite tão profunda, não havia estrelas e o aeroporto de Foz é literalmente no meio do nada, longe de locais de habitação, de onde vêm focos de luz; a abóbada celeste era um vazio negro e infinito, opressor.
A passos rápidos, ainda atordoado dos efeitos que me provocaram o vôo, abriguei-me da escuridão no prédio do aeroporto, onde deveria também pegar a minha mala. Mas como essas esteiras de bagagem dão tontura e fastídio, e ainda se deve ficar de olho fixo atrás das bolsas; bem a minha era uma só mala – pesadinha, diga-se de passagem – e então era mais fácil. De posse da supracitada e cambaleando pelo contrapeso causado, dirigi-me para a porta e direto para onde estavam os táxis. Joguei a mala no chão e fiz sinal.
O taxista resmungou e gesticulou, do carro, a uns bons cinco metros de mim. Franzi o rosto para lhes mostrar que não havia entendido. Limitou-se a resmungar mais alto e gesticular mais forte. Vendo que a comunicação entre nós tinha muito ruído, aproximei-me, talvez fosse argentino, visto que eu não o conseguia entendê-lo de súbito.
— ‘Cê já pego’ o tíquete? – grunhiu mais alto ainda o taxista.
— Tíquete? Que tíquete? – respondi com a minha mente repassando a imagem de um tíquete-refeição e lembrando que eu não tinha nenhum.
— ‘Cê tem que pega’ um tíquete no balcão dos táxis, aí dentro, do lado da porta.
Agradeci com a cabeça. No balcão, uma pequena fila e um atendente enfastiado e sonolento. Mirou-me:
— P’ra onde você vai?
— Boa-noite, atalhei. Eu vou prò… hum… esqueci o nome do hotel, me deixa consultar o voucher…
O balconista fez uma careta como dizendo: “turistas, eu detesto turistas”.
— Aqui… é na Marechal Deodoro! – disse apontando-lhe no voucher.
— Hum… - disse o balconista garatujando alguma coisa num papelucho do tamanho de um post-it e deu-mo. Era um tíquete de viagem a preço fixo.
Voltei para os táxis, agora sim, armado com o bendito tíquete. O taxista mímico de antes já havia partido, mas um outro, jovem, deveria regular de idade comigo, ou pouca coisa mais velho, meio gorducho e de cabelos na altura da nuca me fez sinal.
— Táxi?!
Caminhei em direção ao veículo, entrei, dei-lhe boa-noite-tudo-bem, e entreguei-lhe o papelzinho. O carro pôs-se a andar e pela rodovia, tomamos o caminho de foz, de 8 a 12 quilômetros de distância.
Pelo caminho, o primeiro comentário meu foi elogiar a qualidade do ar, “que quando se vem de São Paulo se nota a diferença”; o taxista ouvia e concordava, depois começou a fazer ele os elogios às qualidades do ar, com um jeito um pouco balbuciante e balofo e uma voz que soava como uma panela na qual se esteja cozinhando macarrão.
— Vê só o senhor…, o ar daqui é muito puro… he, he, é porque a gente não tem indústria… o povo cria boi, planta… tem as cataratas…, mas a cidade não tem nenhuma indústria praticamente…
Era a minha vez de ficar a concordar com “hum-hum”.
— Pois é. – continuou ele – Uma vez… eu levei um biólogo no táxi… e ‘cê ‘tá vendo ali aquelas árvores, por exemplo.
Eram uns coqueiros numa praça, já na entrada de Foz e portando, ao lume do poste.
— Sim, vejo.
— Então, esse biólogo…, que estava indo fazer… alguma-coisa no Paraguai…; se não me falha a memória… ele trabalhava prà… Eletrobrás, algo assim… ele me disse… o senhor consegue ver essas manchas brancas nas árvores… no tronco?
— Hum-hum, vejo sim. São uns fungos não é?
— Isso… o biólogo me disse que… esses fungos em árvore… só tem quando o ar é puro, quase cem-por-cento. Nas árvores dos lugares poluídos… não tem… Então…, esses fungos… são quase… hum… indicadores…, não sei se é bem essa a… a… palavra… indicadores… indicadores… de que o ar… da região é bom, né? Que o ar é puro.
— Ah! – atalhei – então quer dizer que essas manchas brancas, esses fungos, redondos e enrugados acabam funcionando como indicador da pureza do ar… nossa! que interessante!
— Pois é! – fez o taxista, com o rosto orgulhoso e radiante – Agora… se o senhor veio atrás de… ar puro; eu recomendo que ‘cê não vá prò Paraguai…
— É? – fiz curioso – E por quê?
— É que é o seguinte… aqui… e na Argentina também…, a gente até que é cuidadoso, agora … lá no Paraguai, eles jogam tudo… mas tudo mesmo o que você pude’ imagina’… é um baita dum lixão… aí, quando chove… e sai o sol em seguida, o senhor sabe, quando sobre aquele vapor… lá no Paraguai…, quando acontece isso, não dá pra respirar… é insuportável! O esgoto corre em aberto… e eles jogam tudo no chão…
— Bah, que nojo!
— Tanto que a gente chama lá de Ciudad de Lixo…
Depois da xenofobia higiênica, ainda conversamos um pouco sobre diferenças distintivas entre o sistema dos taxímetros de São Paulo, Foz e Curitiba, com análises comparativas.
De-repente, o carro entrou numa guia rebaixada.
— Pronto, – anunciou o taxista – chegamos, é aqui.
Desci do táxi, e quando já ia pôr a mão na maçaneta da porta de trás, onde havíamos alocado a minha mala e a minha bolsa à tiracolo, ouvi me chamarem e a voz, ou melhor, as vozes vinham do alto; e realmente, duma janela do quarto andar estavam todos os componentes do grupo, colegas e amigas (nessa ordem crescente) debruçados. Ergui os olhos ao céu e ei-las.Paguei o taxista e entrei no saguão do hotel; o Gloria all’Egitto ainda ecoava vagamente pela minha cabeça.
Leia ainda: Diários de viagem (I)
2 Comentários:
Salve, ó glorioso conhecimento das conversações com motoristas de táxi. De vez em quando pego um que ouve, numa rádio sertaneja, às 6 da matina, uma conversação idiota entre um pato à la louro josé e um locutor imbecil que puxa assuntos com novelas e celebridades.
Em Buenos Aires há balcões idênticos a esse.
sou paulistano, não há como ter xenofobia higiênica qdo se mora num esgoto a céu aberto rsrs...
Enviar um comentário
<< Home