Diários de viagem (I)
I – O vôo de ida – Epifanias e enjôos
Aeroporto de Cumbica, 21:30. Tendo chegado mais cedo – bem mais cedo, diga-se de passagem – e ter deixado uma considerável soma na mão do taxista, encontrava-me diante do portão de embarque; eu e a minha bolsa à tiracolo. Na verdade, o vôo em si não me preocupava, mas sim a comunicação a fazer no Congresso, na tarde do dia seguinte. Amuado e vestido à burocrata, entrei no microônibus que nos conduziu à avião; o vôo mesmo, somente sairia às dez e dez.
Devidamente acomodado, tomei posse da revista de bordo; nas últimas páginas, explicava-se que as aeronaves eram providas de canais de áudio, e olhando para o braço da minha poltrona, eis que surgem os comandinhos; o fone, subtraí-o do bolsão da poltrona ao lado. Conectei-o e fui passando pelos canais até parar no de música sinfônica.
Estava eu já dormitando, quando foi anunciado que o avião levantaria vôo; levantei a minha janela e ainda com o fone no ouvido, observava as manobras do avião para chegar à cabeceira da pista, deslizando como um grande automóvel. No canal de áudio tocava a Marcha Eslava de Tchaikovsky. O avião posicionou-se no final da cabeceira; e quando começou a tomar velocidade, começou junto o último movimento da Marcha Eslava; a velocidade foi aumentando e a intensidade da música e no segundo toque incidental do Deus Salve o Czar, o avião elevava-se levemente do solo e começava a prender altitude, e pela janela, uma colcha de retalhos luminosa se desvelava; foi realmente uma sensação indescritível, auxiliada principalmente pela trilha sonora.
Mas nem tudo são flores. Quase uma vintena de minutos depois, começou o serviço de bordo, sanduíches de peito de peru e uma meia-dúzia de bebidas a escolher. Eu já havia jantado, mas um sanduíche não era, de maneira alguma, uma má pedida; o carrinho e as aeromoças estavam já na poltrona seguinte a minha, eu era o próximo; quando recolheram o carrinho correndo. O alto-falante anunciou: «srs. Passageiros, nossa aeronave entrará num trecho de instabilidade, pedimos que se mantenham nas suas poltronas e apertem seus cintos». E daí? Turbulência não mata ninguém; mas de-repente, o avião chacoalhava de tal maneira, que parecia que alguém o agitava por fora. No canal de áudio tocava a abertura de Tannhäuser, de Wagner; o avião se agitava e o meu estômago ia e vinha, tanto que eu já estava com o saquinho para emergências – bendito saquinho – na mão. Quinze minutos de convulsões do avião e eu já com o saquinho aberto, não iria resistir, mas a fúria do ar aplacou-se.
Apesar de ter ficado com medo, certamente estava com o semblante totalmente decomposto, pois a argentina que estava ao meu lado perguntou, num português titubeante se estava tudo bem. Respondi que sim, com um sorriso mais-que-amarelo (plus-quam-fulvum).
Mais alguns instantes, o serviço de bordo voltou. A aeromoça toda sorriso, para mim:
— O senhor quer um sanduíche?
Olhei para ela e fiz que não com a cabeça. Ela me mirou mais alguns instantes.
— E um sal-de-frutas?
— Se tiver… por favor. – não me fiz de rogado.
Não é recomendável ouvir Wagner quando o avião estiver sob turbulência.
A partir de então, o avião voou como uma faca que desliza pela manteiga quente, suavilíssimo. Quando anunciaram que Foz já estava abaixo e o avião começaria os procedimentos de decida, começou a tocar no canal de áudio o Gloria all’Egitto, coro triunfal da ópera Aída e terminou exatamente quando o avião estacionou totalmente no solo. A descida ao som de Aída também foi marcante, justamente pela sonoridade do coro: …gloria all’Egitto, gloria!
Interpretei aquilo como bons augúrios: «Ah, vai dar tudo certo!» pensava comigo enquanto aguardava que o corredor do avião estivesse transitável, e ainda enjoado, exultante e emocionadíssimo pelos efeitos da música, a minha vontade quando descia a escada e punha novamente os pés no chão, era de chorar e beijar desesperadamente o solo.
Afinal, era um derradeiro rincão da Pátria; e lembrei-me também da Guerra do Paraguai; e ainda todo o vórtice de lembranças, medos, angústias e alegrias, que por pouco não me deixaram louco naquele instante. Talvez se tivesse tocado o final da Abertura 1812, ao invés de Aída, eu teria sido levado do aeroporto de Foz para um hospício.
Aeroporto de Cumbica, 21:30. Tendo chegado mais cedo – bem mais cedo, diga-se de passagem – e ter deixado uma considerável soma na mão do taxista, encontrava-me diante do portão de embarque; eu e a minha bolsa à tiracolo. Na verdade, o vôo em si não me preocupava, mas sim a comunicação a fazer no Congresso, na tarde do dia seguinte. Amuado e vestido à burocrata, entrei no microônibus que nos conduziu à avião; o vôo mesmo, somente sairia às dez e dez.
Devidamente acomodado, tomei posse da revista de bordo; nas últimas páginas, explicava-se que as aeronaves eram providas de canais de áudio, e olhando para o braço da minha poltrona, eis que surgem os comandinhos; o fone, subtraí-o do bolsão da poltrona ao lado. Conectei-o e fui passando pelos canais até parar no de música sinfônica.
Estava eu já dormitando, quando foi anunciado que o avião levantaria vôo; levantei a minha janela e ainda com o fone no ouvido, observava as manobras do avião para chegar à cabeceira da pista, deslizando como um grande automóvel. No canal de áudio tocava a Marcha Eslava de Tchaikovsky. O avião posicionou-se no final da cabeceira; e quando começou a tomar velocidade, começou junto o último movimento da Marcha Eslava; a velocidade foi aumentando e a intensidade da música e no segundo toque incidental do Deus Salve o Czar, o avião elevava-se levemente do solo e começava a prender altitude, e pela janela, uma colcha de retalhos luminosa se desvelava; foi realmente uma sensação indescritível, auxiliada principalmente pela trilha sonora.
Mas nem tudo são flores. Quase uma vintena de minutos depois, começou o serviço de bordo, sanduíches de peito de peru e uma meia-dúzia de bebidas a escolher. Eu já havia jantado, mas um sanduíche não era, de maneira alguma, uma má pedida; o carrinho e as aeromoças estavam já na poltrona seguinte a minha, eu era o próximo; quando recolheram o carrinho correndo. O alto-falante anunciou: «srs. Passageiros, nossa aeronave entrará num trecho de instabilidade, pedimos que se mantenham nas suas poltronas e apertem seus cintos». E daí? Turbulência não mata ninguém; mas de-repente, o avião chacoalhava de tal maneira, que parecia que alguém o agitava por fora. No canal de áudio tocava a abertura de Tannhäuser, de Wagner; o avião se agitava e o meu estômago ia e vinha, tanto que eu já estava com o saquinho para emergências – bendito saquinho – na mão. Quinze minutos de convulsões do avião e eu já com o saquinho aberto, não iria resistir, mas a fúria do ar aplacou-se.
Apesar de ter ficado com medo, certamente estava com o semblante totalmente decomposto, pois a argentina que estava ao meu lado perguntou, num português titubeante se estava tudo bem. Respondi que sim, com um sorriso mais-que-amarelo (plus-quam-fulvum).
Mais alguns instantes, o serviço de bordo voltou. A aeromoça toda sorriso, para mim:
— O senhor quer um sanduíche?
Olhei para ela e fiz que não com a cabeça. Ela me mirou mais alguns instantes.
— E um sal-de-frutas?
— Se tiver… por favor. – não me fiz de rogado.
Não é recomendável ouvir Wagner quando o avião estiver sob turbulência.
A partir de então, o avião voou como uma faca que desliza pela manteiga quente, suavilíssimo. Quando anunciaram que Foz já estava abaixo e o avião começaria os procedimentos de decida, começou a tocar no canal de áudio o Gloria all’Egitto, coro triunfal da ópera Aída e terminou exatamente quando o avião estacionou totalmente no solo. A descida ao som de Aída também foi marcante, justamente pela sonoridade do coro: …gloria all’Egitto, gloria!
Interpretei aquilo como bons augúrios: «Ah, vai dar tudo certo!» pensava comigo enquanto aguardava que o corredor do avião estivesse transitável, e ainda enjoado, exultante e emocionadíssimo pelos efeitos da música, a minha vontade quando descia a escada e punha novamente os pés no chão, era de chorar e beijar desesperadamente o solo.
Afinal, era um derradeiro rincão da Pátria; e lembrei-me também da Guerra do Paraguai; e ainda todo o vórtice de lembranças, medos, angústias e alegrias, que por pouco não me deixaram louco naquele instante. Talvez se tivesse tocado o final da Abertura 1812, ao invés de Aída, eu teria sido levado do aeroporto de Foz para um hospício.
2 Comentários:
A Sinfonia Turangalila de Messiaen, que ouvimos alhures, parece trilha sonora de desastre aéreo. Com o avião sendo triturado, no solo, por um anão com uma faquinha.
Cremonese Collegium Musicum – Piva
Francesco Viscomi – Sogno d´amore
Al alva venid bue amigo – Dufay collective
Mais umas músicas... tenta baixar, depois vc me fala o q achou...
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