sábado, fevereiro 12

O bancário e a incrível invasão do país vizinho

Um dia qualquer, uma manhã como qualquer outra. Um sol de verão já refulgia pela vidraça. Ao longe, atrás do pequeno verde do parque, a cúpula de cobre recém limpa de uma igreja brilhava festivamente. As maritacas voavam; os prédios eram o de sempre, aquela obscena silhueta. Lá fora, apesar de ser dia-de-semana, reinava uma certa paz, como um meio feriado. Em compensação, na agência Guadiana do Banco da Nação, esquina da rua Guadiana com a rua Volga, a situação era a mesma de todo dia, gente mal-acostumada com a lei do mercado querendo ser atendida rapidamente e querendo mundos e fundos. Gente mal-educada, funcionárias de repartições públicas vizinhas, como do Instituto de Profilaxia da Síndrome de Einsenstaff-Boilard «Prof. Alexei Silveira», ou simplesmente Instituto Alexei Silveira, ou da Intendência de Vigliância Sanitária, Profilática e Epidêmica, vinculada ao Ministério da Saúde Pública (Ministério inclusive somente a umas duas quadras do banco, na alameda General Szertéhély), gente que quer ser tratada como rei e não merece mais do que as pessoas lhes atirem alguns copeques de esmola.
Dentre os vinte-e-cinco atendentes da agência do Banco da Nação (cujo nome real era Banco de Depósitos e Caixa Econômica Geral da Nação L...-ênia, também conhecido pela infame sigla de Badecegenal, abandonada oficialmente devido ao trocadilho com nomes de remédio, principalmente uma certa pomada para hemorróidas muito popular), um em especial, a sim não lhe agradava nem um pouco aquela situação. Cada um funcionário-público que se sentava à sua mesa, o estômago lançava-lhe uma jatada contra o esôfago; e por mais que ele tentasse manter um tom seco e burocrático, com os óculos acavalados na ponta do nariz e cenho franzido, o energúmeno funcionário-público continuava a fingir e forçar uma intimidade forçada, como se fosse um estupro.
- Nesse seu demonstrativo pouco cabe, senhor. Não tenho idéia de quanto o banco - sempre ele puxava, ou melhor jogava a sardinha para a brasa do banco - poderá lhe emprestar.
- Então você vê aí pra mim... bonito esse teu calendário de mesa! Você não tem um pra me dar?
Ele era extremamente cioso com tratamento, se tratava a pessoa por o senhor, a senhora e lhe dava os pronomes de terceira pessoa, não admitia o tratamento por você e os complementos de segunda pessoa. Para ele, era tratamento familiar ou entre amigos. Certa vez deixou escapar entre dentes:
- Eu não sou seu amigo!
- Que?! Eu não entendi! - respondeu o funcionário-público.
- Nada! - estúpido - Vou simular o seu empréstimo! O empréstimo para o senhor!
A enfase que nosso bancário deu ao pronome possessivo e a forma de tratamento foi tal, que quando se afastou para fazer os cálculos, o funcionário sentado além de não ter capitado a mensagem, olhou para outro funcionário que aguardava comodamente sua vez de ser atendido, e girou o indicador em volta da têmpora.
Naquele dia de verão, a atmosfera dentro da agência estava simplesmente insuportável. Lotada, ar-condicionado roto e sem previsão de conserto. Apesar do traje social, os funcionários suavam como se fossem uma nascente. Os funcionários-públicos impacientíssimos na espera, agitavam nervosamente jornais, prospectos, folhetos, promovendo um farfalhar que tiraria a concentração dum monge budista, sendo que na L...-ênia poucos buditas havia; são todos muito ocidentais para isso, ainda mais naquela capitalzinha provinciana, com as suas igrejinhas com cúpulas de cobre, brilhantes ou esverdeadas. Nosso bancário estava lá, numa mesa de cedro-eslovaco, na sua mesa de cedro-eslovaco, a mesma mesa de cedro-eslovaco que o acompanhava há dez anos. Não bastasse os farfalhar irritante, os malditos funcionários-públicos começaram os diabos das suas conversas suburbanas e provincianas - Deus! como era possível aquele tipo de conversa suburbana naquela cidadeca promovida a capital? Erro de Ladislau V, mas agora foi, estamos na República há uns bons decênios - e como estava cheio o metrô e como é cara a passagem de ônibus e como subiu de preço a pomada para hemorróidas. Aquela do Laboratório Central? Sim aquela mesmo, que tem o nome parecido com a sigla do banco. E a sogra falando mal da nora e vice-versa; e fando mal dos vizinhos.
O nosso bancário atrelou-se à mesa, agarrou nas pontas pelas duas mãos para conter-se; estava ficando irritado.
- Então, - rosnou ao pascácio-público sentado à sua frente - quanto o senhor vai querer?
Foi ficando vermelho. O rumor das conversas (você viu a Rosinha, do Financeiro? Casou c’o Borbas, da Seção de Transportes! Sério? Aquele bicho horroroso? Ha, ha, ha!) e farfalhar dos folhetos, mais o calor estavam entrando pelas suas veias. Começou a tremer.
- Eu, seu moço? Eu queria uns cinqüenta mil... quanto é a taxa de juro?
Estava quase babando. E aquela marcha militar lá fora? Juntou-se à babel de ruídos por alguns instantes mas bruscamente parou. Ficaram somente os ruídos de dentro do banco.
- Vou pegar a tabela.
Levantou-se e sentiu a confluência de toda bronca do mundo em si. Seus olhos chamenjantes chamuscavam. De verde estavam quase roxos. Olhou aquela cena deprimente: gente sendo atendida e a espera lotada por umas quarenta pessoas. Não ia agüentar. Não agüentou.
- Calem a boca... - murmurou. Tanto que nem a pessoa que estava na sua mesa ouviu. - Calem a boca! - veio já num tom normal.
- Que? - reagiu por osmose o boçal da cadeira.
- Calem a boca! - disse o nosso bancário numa altura ouvida já num raio duns quatro metros. Algumas pessoa já o olharam assutadas pela imprevista interrupção.
- Como? - balbuciou uma senhora na mesa ao lado, nitidamente ofendida e intimidada.
- Calem a boca!!! - estou num grito desumano que quase lhe estoura as veias do pescoço.
Todo o saguão da agência parou. Duzentos e cinqüenta metros quadrados de pedidos e empréstimos; duzentos e cinqüenta metros quadrados de silêncio atônito. Os encarregado por de trás das divisórias de vidro nem tiveram tempo de levantar-se. O gerente olhava aquele funcionário como se visse o próprio Demônio diante de si. A agência toda sentada, somente nosso bancário de pé. Alguns segundos mais de silêncio assustadiço.
- Eu... - continuou com uma voz, leve mas carregada de raiva - eu, odeio, o-de-io todos, todos, todos vós. Vós me dais nojo! - fez como se fosse vomitar, inclinando-se levemente; seus olhos estavam injetados de sangue. - Todos, todos! Sois todos uns vermes! Eu não ganho suficiente para agüentar as vossas súplicas, agüentar os vossos desaforos! Vermes! Vermes abjetos, repugnantes, rastejantes! Vis!
Uma pessoa tentou falar alguma coisa, com a voz entrecortada, uma indignação:
- Você... vo-cê não pode fa-falar assi-sim con-no-nosco...
-Cal’a boca qu’eu não pedi a tua opinião. Dez anos eu agüentei os vossos choramingos! Agora... - fez uma pausa e respirou - agora, sinceramente, eu quero que todos vós ides prà puta que vos pariu! - mais alguns segundos em silêncio - Muitíssimo obrigado. Fez uma reverência à muda assistência. Pegou seu casado das costas da cadeira, sua bolsa e caminhou para a porta. Virou-se ainda para fazer uma última reverência à platéia, mas quando voltou-se, ouviu-se uma agudo toque de trompa. Todos viraram seus olhos para a vidraça. Na rua, uma companhia de infantaria toda na rua, desfilando. Não era o exército da L...-ênia, era a bandeira do país vizinho e inimigo mortal. Todos esperavam uma guerra próxima, mas pelo jeito não haveria já que as tropas inimigas estavam na capital; pensar que há meia hora dizer que seriam invadidos pareceria uma sandice. Os soldados chutaram a vidraça e entraram. Todos os que estavam sentados jogaram-se das cadeiras para o chão. Somente nosso bancários continuava de pé. Um homem destacou-se do regimento e veio ter com ele.
- E você? Quem é? Que faz aí de pé?
Pelo uniforme diferente do resto da tropa, mas da mesma cor, deduziu-se que fosse um oficial. A tropa estancou atrás dele.
- Eu? - respondeu o bancário - Sou somente um doido varrido funcionário de banco... e o senhor?
- Petulante... - ruminou o militar admirado - Eu sou o general-de-brigada Antalnovicz!
- Ótimo... vê esses idiotas aí dentro? São todos do senhor... não me precisa passar recibo. Quanto a mim, um a mais ou a menos não faz diferença. Não me sinto bem e vou para casa, se o General me der licença... - começou a deslocar-se na calçada, indo em direção à rua Don. As tropas iam cercá-lo quando ouviu-se um berro.
- Quietos! - irrompeu o General - deixem-no ir... vê-se logo que é um homem doente... doente ou louco.
Rapidamente o tumulto na cidade parou, durou umas duas horas. O governo rendeu-se e o país todo passou a ser um Comissáriado Militar de Governança do país vizinho. O melhor de tudo é que os bancos ficaram proibidos de funcionar até segunda ordem. Nosso amigo bancário ainda conseguiu pegar uma farmácia aberta antes do toque de recolher e comprou umas aspirinas. Foi para casa e dormiu um pouco.

4 Comentários:

Blogger Jeferson Ferreira disse...

Muito bom! O velho confronto Meio X Indivíduo, só que numa chave quase surreal...

segunda-feira, fevereiro 14, 2005 1:57:00 da tarde  
Blogger Eva disse...

É de fato importantíssimo atentar para o tratamento correto, distingüir o formal do familiar; é de tirar o juizo da pessoa ser tratado de forma inadequada. E o que dizer dos ignóbeis que, de posse do seu cartão de crédito ou similar, lhe chamam pelo primeiro nome? Eu não escondo minha indignação: 'nós fomos apresentados?'. Imagine que é costume aceitável, hoje em dia, trocar beijinhos em vez de apertos de mão em almoços de negócios. Onde é que vamos parar, caro Conde?

segunda-feira, fevereiro 14, 2005 10:58:00 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

A influência do tio Buzzati me é muito clara. E posso dizer uma coisa: eu gosto! Ainda mais com o toque do ainda tão recente "eruditismo" por vós aventado, ó Conde!

quinta-feira, fevereiro 17, 2005 9:43:00 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

só pra afirmar novamente:
Fantástico! (como sempre)

Lela
http://fautrespire.blogspot.com

sexta-feira, fevereiro 18, 2005 10:29:00 da manhã  

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