296. Curta fábula urbana (III)
(ao Orlando)
De raios e blasfêmias
Levantou-se. Ao invés de pisar nos chinelos, deu um pisão no gato, logo cedo. «Merda!» No banheiro, a maldita da válvula do vaso disparou; teve de correr até o registro e fechá-lo. Abriu a geladeira, para pegar o leite, as maçãs caíram todas aos seus pés; a mãe levantou: «Mas que diabo! Será que você podia fazer menos barulho? Os outros estão dormindo!». Saiu de casa amuado. Perdeu o ônibus; conseguiu pegar o seguinte, mas teve de viajar na porta, com o vento gelado nas costas. No metrô, uma fila imensa para passar as catracas; vagões lotados. Na hora de descer, esbarrou acidentalmente numa moça e por isso ganhou o epíteto de safado, uma bolsada e uns pontapés duns marmanjos, noves-fora. Finalmente chegou no escritório: a carta de demissão estava sobre a mesa. O chefe nem apareceu, não queria nem dar satisfações; antes que saísse do recinto, o telefone tocou: era a noiva. Rompeu o noivado pelo telefone. Saiu pela calçada atordoado e escutou uma música de piano, vinha duma loja de instrumentos. Parou diante da vitrina e ficou a olhar para dentro, uma moça tocava piano; não durou muito tempo: um ciclista trombou consigo e caíram os dois pela vitrina, estourando o vidro. Ele ficou caído do lado dum clarinete e cercado de cacos de vidro, olhando para o ciclista. «Idiota!», rugiu o ciclista montando na bicicleta. Chegou o dono da loja, viu-o caído: «Imbecil, olha o prejuízo que você me deu! E pela sua cara, não deve ter onde cair morto! Olha só essa barba mal-feita, seu desocupado! Desanda, desanda antes que eu chame a polícia!». Havia perdido o emprego não tinha quinze minutos e já estava com cara de desempregado?! Andou umas três quadras e parou diante duma banca de jornal; resolveu comprar o jornal para ver os classificados – quem sabe não arrumava um emprego hoje mesmo. Pagou o exemplar e foi sentar-se num banco de praça para poder ler. Tomou uma carga de pombo no ombro direito. Pôs-se a ler, mas logo um pé-de-vento fortíssimo que começou do nada, rasgou a folha que estava na sua mão e levou as que estavam apoiadas no banco. Saiu correndo atrás das folhas voadoras. Alguém, dalguma anônima janela dum prédio de apartamentos cinzento, berrou para baixo: «Porco, suíno! Na sua casa não tem lixo?!». Correndo, acabou por invadir a avenida; o caminhão de melancias que vinha subindo a ladeira desviou dele por um triz – ou ele que desviou do caminhão? «Animal! É cego, sua besta-quadrada?!» soltou o motorista do caminhão. Acabou por perder as folhas, que se enfiaram por uma rua como pássaros sujos fornicando no ar. Tomou a ladeira no sentido descendente e além do forte vento, que empurrava o seu corpo, logo percebeu que começara a escurecer subitamente; logo ia desabar uma tempestade daquelas que há muito não se via. Esquecera o guarda-chuva em casa, o jornal se lhe voara e observou que a longa rua pela qual andava, a ladeira que agora era um plano, não tinha uma única loja com toldo, ou uma marquise sob a qual ele pudesse esconder-se ou reparar-se. Começaram os raios e os primeiros pingos, grossos como cusparadas: «Deus está cuspindo em mim! Porco!», pensou consigo. Não havia ninguém na rua acossada pela chuva que caía agora a cântaros. De raiva, no meio da rua, da chuva e do vento, começou a dar saltos e chacoalhar os braços como um sandeu. Logo começou a gritar desarticuladamente. De improviso, virou-se para o céu e apontou: «Culpa tua! Infame, infame! Miserável onipotente! Me odiai? Então me fulminai, puta-que…».
Ele não acabou a frase. Segundo as testemunhas indagadas pelo Serviço de Óbitos, ele pulava e berrava horrivelmente pela rua, quando um raio o atingiu.
Moral da história: toda paciência tem limites.
De raios e blasfêmias
Levantou-se. Ao invés de pisar nos chinelos, deu um pisão no gato, logo cedo. «Merda!» No banheiro, a maldita da válvula do vaso disparou; teve de correr até o registro e fechá-lo. Abriu a geladeira, para pegar o leite, as maçãs caíram todas aos seus pés; a mãe levantou: «Mas que diabo! Será que você podia fazer menos barulho? Os outros estão dormindo!». Saiu de casa amuado. Perdeu o ônibus; conseguiu pegar o seguinte, mas teve de viajar na porta, com o vento gelado nas costas. No metrô, uma fila imensa para passar as catracas; vagões lotados. Na hora de descer, esbarrou acidentalmente numa moça e por isso ganhou o epíteto de safado, uma bolsada e uns pontapés duns marmanjos, noves-fora. Finalmente chegou no escritório: a carta de demissão estava sobre a mesa. O chefe nem apareceu, não queria nem dar satisfações; antes que saísse do recinto, o telefone tocou: era a noiva. Rompeu o noivado pelo telefone. Saiu pela calçada atordoado e escutou uma música de piano, vinha duma loja de instrumentos. Parou diante da vitrina e ficou a olhar para dentro, uma moça tocava piano; não durou muito tempo: um ciclista trombou consigo e caíram os dois pela vitrina, estourando o vidro. Ele ficou caído do lado dum clarinete e cercado de cacos de vidro, olhando para o ciclista. «Idiota!», rugiu o ciclista montando na bicicleta. Chegou o dono da loja, viu-o caído: «Imbecil, olha o prejuízo que você me deu! E pela sua cara, não deve ter onde cair morto! Olha só essa barba mal-feita, seu desocupado! Desanda, desanda antes que eu chame a polícia!». Havia perdido o emprego não tinha quinze minutos e já estava com cara de desempregado?! Andou umas três quadras e parou diante duma banca de jornal; resolveu comprar o jornal para ver os classificados – quem sabe não arrumava um emprego hoje mesmo. Pagou o exemplar e foi sentar-se num banco de praça para poder ler. Tomou uma carga de pombo no ombro direito. Pôs-se a ler, mas logo um pé-de-vento fortíssimo que começou do nada, rasgou a folha que estava na sua mão e levou as que estavam apoiadas no banco. Saiu correndo atrás das folhas voadoras. Alguém, dalguma anônima janela dum prédio de apartamentos cinzento, berrou para baixo: «Porco, suíno! Na sua casa não tem lixo?!». Correndo, acabou por invadir a avenida; o caminhão de melancias que vinha subindo a ladeira desviou dele por um triz – ou ele que desviou do caminhão? «Animal! É cego, sua besta-quadrada?!» soltou o motorista do caminhão. Acabou por perder as folhas, que se enfiaram por uma rua como pássaros sujos fornicando no ar. Tomou a ladeira no sentido descendente e além do forte vento, que empurrava o seu corpo, logo percebeu que começara a escurecer subitamente; logo ia desabar uma tempestade daquelas que há muito não se via. Esquecera o guarda-chuva em casa, o jornal se lhe voara e observou que a longa rua pela qual andava, a ladeira que agora era um plano, não tinha uma única loja com toldo, ou uma marquise sob a qual ele pudesse esconder-se ou reparar-se. Começaram os raios e os primeiros pingos, grossos como cusparadas: «Deus está cuspindo em mim! Porco!», pensou consigo. Não havia ninguém na rua acossada pela chuva que caía agora a cântaros. De raiva, no meio da rua, da chuva e do vento, começou a dar saltos e chacoalhar os braços como um sandeu. Logo começou a gritar desarticuladamente. De improviso, virou-se para o céu e apontou: «Culpa tua! Infame, infame! Miserável onipotente! Me odiai? Então me fulminai, puta-que…».
Ele não acabou a frase. Segundo as testemunhas indagadas pelo Serviço de Óbitos, ele pulava e berrava horrivelmente pela rua, quando um raio o atingiu.
Moral da história: toda paciência tem limites.
5 Comentários:
Un relat fantàstic, benvolgut Sérgio.
perdida de riso! muito bom! tive alguma dificuldade em seguir a história por causa dos termos usados, mas até isso teve graça!
parabéns!
Muito bom, mocinho...
Miquel,
Moltes, gràcies, moltes gràcies. Em quedo molt feliç.
Sem Cantigas,
Bom que te divertiste... sabes, que o grande problema entre nós, lusófonos separados pelo Mar Oceano, refere-se principalmente ao vocabulário das invenções mais recentes... fruto do desligamento cultural... e obrigado!
Camila,
Obrigado, obrigado de coração.
não só!
válvula do vaso
registro
catracas
trombou
quadras
carga de pombo
são as palavras que tiro o sentido pela frase e depois há a tua graça e expressões nunca antes lidas!
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