terça-feira, abril 18

296. Curta fábula urbana (III)

(ao Orlando)

De raios e blasfêmias


Levantou-se. Ao invés de pisar nos chinelos, deu um pisão no gato, logo cedo. «Merda!» No banheiro, a maldita da válvula do vaso disparou; teve de correr até o registro e fechá-lo. Abriu a geladeira, para pegar o leite, as maçãs caíram todas aos seus pés; a mãe levantou: «Mas que diabo! Será que você podia fazer menos barulho? Os outros estão dormindo!». Saiu de casa amuado. Perdeu o ônibus; conseguiu pegar o seguinte, mas teve de viajar na porta, com o vento gelado nas costas. No metrô, uma fila imensa para passar as catracas; vagões lotados. Na hora de descer, esbarrou acidentalmente numa moça e por isso ganhou o epíteto de safado, uma bolsada e uns pontapés duns marmanjos, noves-fora. Finalmente chegou no escritório: a carta de demissão estava sobre a mesa. O chefe nem apareceu, não queria nem dar satisfações; antes que saísse do recinto, o telefone tocou: era a noiva. Rompeu o noivado pelo telefone. Saiu pela calçada atordoado e escutou uma música de piano, vinha duma loja de instrumentos. Parou diante da vitrina e ficou a olhar para dentro, uma moça tocava piano; não durou muito tempo: um ciclista trombou consigo e caíram os dois pela vitrina, estourando o vidro. Ele ficou caído do lado dum clarinete e cercado de cacos de vidro, olhando para o ciclista. «Idiota!», rugiu o ciclista montando na bicicleta. Chegou o dono da loja, viu-o caído: «Imbecil, olha o prejuízo que você me deu! E pela sua cara, não deve ter onde cair morto! Olha só essa barba mal-feita, seu desocupado! Desanda, desanda antes que eu chame a polícia!». Havia perdido o emprego não tinha quinze minutos e já estava com cara de desempregado?! Andou umas três quadras e parou diante duma banca de jornal; resolveu comprar o jornal para ver os classificados – quem sabe não arrumava um emprego hoje mesmo. Pagou o exemplar e foi sentar-se num banco de praça para poder ler. Tomou uma carga de pombo no ombro direito. Pôs-se a ler, mas logo um pé-de-vento fortíssimo que começou do nada, rasgou a folha que estava na sua mão e levou as que estavam apoiadas no banco. Saiu correndo atrás das folhas voadoras. Alguém, dalguma anônima janela dum prédio de apartamentos cinzento, berrou para baixo: «Porco, suíno! Na sua casa não tem lixo?!». Correndo, acabou por invadir a avenida; o caminhão de melancias que vinha subindo a ladeira desviou dele por um triz – ou ele que desviou do caminhão? «Animal! É cego, sua besta-quadrada?!» soltou o motorista do caminhão. Acabou por perder as folhas, que se enfiaram por uma rua como pássaros sujos fornicando no ar. Tomou a ladeira no sentido descendente e além do forte vento, que empurrava o seu corpo, logo percebeu que começara a escurecer subitamente; logo ia desabar uma tempestade daquelas que há muito não se via. Esquecera o guarda-chuva em casa, o jornal se lhe voara e observou que a longa rua pela qual andava, a ladeira que agora era um plano, não tinha uma única loja com toldo, ou uma marquise sob a qual ele pudesse esconder-se ou reparar-se. Começaram os raios e os primeiros pingos, grossos como cusparadas: «Deus está cuspindo em mim! Porco!», pensou consigo. Não havia ninguém na rua acossada pela chuva que caía agora a cântaros. De raiva, no meio da rua, da chuva e do vento, começou a dar saltos e chacoalhar os braços como um sandeu. Logo começou a gritar desarticuladamente. De improviso, virou-se para o céu e apontou: «Culpa tua! Infame, infame! Miserável onipotente! Me odiai? Então me fulminai, puta-que…».
Ele não acabou a frase. Segundo as testemunhas indagadas pelo Serviço de Óbitos, ele pulava e berrava horrivelmente pela rua, quando um raio o atingiu.
Moral da história: toda paciência tem limites.

5 Comentários:

Blogger Miquel Boronat Cogollos disse...

Un relat fantàstic, benvolgut Sérgio.

quarta-feira, abril 19, 2006 8:54:00 da manhã  
Blogger Mónica disse...

perdida de riso! muito bom! tive alguma dificuldade em seguir a história por causa dos termos usados, mas até isso teve graça!
parabéns!

quarta-feira, abril 19, 2006 10:35:00 da manhã  
Blogger Camila Rodrigues disse...

Muito bom, mocinho...

quarta-feira, abril 19, 2006 4:23:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Miquel,
Moltes, gràcies, moltes gràcies. Em quedo molt feliç.

Sem Cantigas,
Bom que te divertiste... sabes, que o grande problema entre nós, lusófonos separados pelo Mar Oceano, refere-se principalmente ao vocabulário das invenções mais recentes... fruto do desligamento cultural... e obrigado!

Camila,
Obrigado, obrigado de coração.

quinta-feira, abril 20, 2006 11:08:00 da manhã  
Blogger Mónica disse...

não só!
válvula do vaso
registro
catracas
trombou
quadras
carga de pombo
são as palavras que tiro o sentido pela frase e depois há a tua graça e expressões nunca antes lidas!

quinta-feira, abril 20, 2006 12:14:00 da tarde  

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