223. A Estupidez
Uma manhã de primavera, ensolarada e colorida – mas isso se presume, porque o recinto não tinha janelas, somente uns hediondos postigos, lá em cima, junto do teto. Fecham o ambiente mesas de madeira escura, povoadas por máquinas de escrever; atrás de cada mesa e cada máquina, eventualmente um funcionário, as cadeiras vazias – se devidamente paramentada com uma blusa ou um suéter, indicam que seu titular está por perto, às vezes não tão perto.
Entra pelo corredor central um homenzinho de casaco e com aspecto tísico, no mínimo gripado. Vem com uma pasta de protocolado na mão, embora não parecesse conhecido, ou seja, não era funcionário da repartição. Ficou parado uns bons cinco minutos, enquanto os funcionários sincronizavam sua respiração e seus suspiros com o ritmo dos tipos batendo no carro da máquina.
No fundo da sala – talvez preso pelo calor que se elevava lentamente com o decorrer dos minutos e o sol que vinha mais forte sobre o telhado, oculto somente pelo forro de estuque - no fundo da sala, o retrato oficial do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, naquele retrato oficial, sonolentíssimo.
Depois dos cinco minutos, um dos funcionários despertou do sono onde o havia jogado os hipnóticos estalidos das máquinas de escrever. Levantou as vistas do teclado e com os olhos emplastrados de sono e tédio deixou cair da boca um «Sim?» para o inesperado visitante, um «sim» que caiu no chão e saiu quicando; tanto que o tísico teve de fazer um olhar de dúvida e inclinar ligeiramente a cabeça, como quem faz para ouvir melhor. Já um pouco mais desperto e com as mãos fora das teclas, cabeça erguida – antes de olhar o rosto do visitante, olhou de soslaio, assustado para o retrato do Presidente, que com o olhar frio e plácido, parecia reprová-lo. Olhou novamente para o desconhecido. «Sim?»; «Boa tarde,» fez o homem juntando as mãos «eu vim trazer esta petição». «Sim, sim; talvez o senhor tenha vindo ao lugar certo; vejamos». O homem lhe entregou a pastinha como o padre que entrega a hóstia. O profanador começou a escarafunchar o processo, pegou um lápis – pegou um lápis! – e fez círculos em alguns ofícios e os esquadrinhava com a vista; suas íris corriam destras por trás das lentes dos óculos. O tísico resumia suas reações a um leve arquejar de sobrancelhas e dilatações das narinas. Mais uns minutos de criteriosa averiguação e mais algumas circuladas a lápis, o funcionário soltou: «está tudo em ordem, só preciso que o senhor me traga uma cópia fotostática mais nítida da sua carteira de identidade»; o homem pensou em reagir, mas o funcionário, acidentalmente lhe lançou um olhar. «Nas lojas do prédio, do lado da rua do Comércio, tem uma papelaria; o senhor pode tirar a cópia lá; eu aguardo o senhor antes de sair para o almoço». Olhou novamente o retrato do Primeiro Mandatário.
O homem tísico agradeceu, recolheu a pasta como quem recolhia o Santo Sudário e disse que voltava em questão de alguns minutos. O funcionário tirou um pequeno pedaço de compensado da gaveta e começou a lanhá-lo com o extrator de grampos, metodicamente.
Alguns instantes depois, meio-dia cheio – não havia janelas, mas o rumor dos sinos da igreja de São Bartolomeu entrava pela menor fresta que houvesse, e mesmo que não houvesse os sinos, algum diligente funcionário sempre informava: «meio-dia!»; e todos se levantavam quase simultaneamente, entupindo o pequeno corredor, o hall do andar, os elevadores, as escadas, as lanchonetes e as ruas ganhavam um fluxo absurdo de pessoas que queriam – ou pareciam querer – estar todas no mesmo lugar, na mesma hora. Os outros funcionários saíram, mas aquele continuava a lanhar a placa de madeira. Alguns instantes, assoma-se à porta o tísico enrolado no seu casaco. «Obrigado por ter esperado… aqui está o processo e a cópia nova…». Esticou servilmente os dois itens ao funcionário, e a carteira de identidade, um pequeno documento que cabe num bolso, fora aumentado até ocupar toda a área da folha de papel. «Agora está nítido, não?» perguntou o tísico relampejando o olhar. O funcionário olhou para a pasta e para a cópia de paquidérmicas proporções. «Ótimo, ótimo…», e ergueu ao tísico a placa que lanhava: «o que o senhor acha?» numa voz extremamente calma. Era um alto-relevo de Cristo na cruz e no fundo, pequenas figuras à moda de Bosch; o tísico limitou-se a tossir assustado.
3 Comentários:
Tu é viado?
Pergunta fora de contexto. Se você acha, paciência.
Bom, eu abri o fórum para dizer que eu voltei a ser leitora deste blog, passados os contratempos, mas pelo que vejo, a discussão está em outro nível.. hahahaha
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