quarta-feira, março 30

Indigestões do merídio

Um texto escrito à hora do almoço, para aqueles que como tantos outros, preferem fazer outra coisa ao invés de enfurnar-se em qualquer restaurante decrépito junto com outros bois.
O pomo da discórdia António era um senhor de meia-idade – aquela meia idade indefinida entre os 30 e o 60 anos -, funcionário público. Sua vida era pacata; do escritório para casa – à hora do ocaso, veja-se bem – e de casa para o escritório – pela manhã. Dava-se bem com os colegas de trabalho, conversava do mais e do menos com o jornaleiro, com o açougueiro, e até com o técnico eletrônico. Pegava o trem suburbano para ir ao trabalho. Se alguém se sentava junto de si e puxasse conversa, o senhor António retribuía amigavelmente. Enfim, era uma pessoa sociável, e mesmo sendo solteiro, em paz consigo mesmo. Porém, um dia veio a manifestar-se a inquietude, talvez lançada pela providência divina. Um dia como qualquer outro, fazia calor logo cedo. No saguão interno da estação de baldeação da Variante 1 para o tronco D, havia sido autorizada a colocação de barracas de gêneros comestíveis, principalmente os campestres, visto que a região ali, era semi-rural. Barracas estouravam de frutas luzidias e aromáticas; os olores ribombavam pelos corredores de acesso e no saguão, era uma verdadeira orgia olfativa, os aromas se imiscuíam promiscuamente. Como tantos outros passageiros, o senhor António também fora atraído para o recinto e seus olhos maravilhavam-se diante de tanta generosidade da Mãe-Natura. «Venturado seja, ó Deus, um país como este nosso, que pode produzir tão belas frutas», pensava consigo. De improviso, bateu os olhos numa banca de maçãs; mas não quaisquer maçãs; maçãs bojudas, de vermelho-vivo, imensas, quase tal-qual uma toranja; por detrás, uma camponesa robusta, alva com o cabelo loiro posto às tranças enroladas no alto da cabeça, fazendo-lhe uma quase uma coroa. O senhor António, atraído pelas maçãs, estacionara junto ao monte. Um dinar cada uma. Ora, com um dinar, se pode comprar meia dúzia das pequenas; mas aquelas maçãs não eram mação quaisquer, eram maçãs dignas da Exposição Nacional Agrícola. Estendeu à camponesa uma nota de dois dinares. «Duas, por favor.». A camponesa pôs as maravilhas dentro duma sacolinha indigna, em comparação com a majestade das frutas. «Obrigado».Com u’a maçã daquelas, o almoço estava garantido. E o senhor António foi-se a trabalhar. À hora do almoço, depois que os colegas saíram para comer, ele puxou a sacolinha sem-vergonha da gaveta; tirou um dos pomos, e foi pô-lo na boca; porém a mão estacou-se-lhe. Simplesmente, ele não poderia comer aquela maçã, tão perfeita, tão majestosa, imperial, era essa a palavra que ele procurava no momento e não encontrava. Repôs a fruta na mesa. Olhou-a continuamente por vários minutos, até que voltaram os colegas. «António! Que diabo! Onde você arrumou u’a maçã desse tamanho.» António sentiu-se incomodado; «querem roubar-ma! Em lugar nenhum!». Os colegas estranharam a repentina agressividade em pessoa geralmente tão pacata. À tarde, para o senhor António, passou-se arrastando; não conseguia trabalhar. O encarregado, que soube do incidente do pós-almoço, chamou António à sua sala e disse-lhe que parecia abatido, e todas aquelas outras coisas, e o dispensou pela tarde. António tomou o rumo da estação de trem, pálido e pensativo, considerava-se indigno de comer aquela maçã e a via entronada. Aquela maçã era a imperatriz da Áustria, ele jamais poderia, com os seus dentes plebeus sequer mordiscá-la. «Maria Cristina!», gritou, chacoalhando a sacola, frente a transeuntes indiferentes. Mas, por outro lado, elas são orgânicas, estão, num, por enquanto lerdo, processo de putrificação, desde que saiu da macieira; apodreceriam sem mais. Como poderia ele, sobreviver àquelas frutas divinas, perfeitas? Nesse exato momento, percebeu que havia desviado o caminho e estava bem no meio da ponte sobre o rio. Jogou-se.

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