terça-feira, março 14

279. Rascunhos: o trem

É pegar o trem, que vem esborrifando água (que água?) em quem está na plataforma, os pantógrafos vêm cantando a velha canção nos cabos, como o arco e as cordas de um violino. Dia nublado. O trem provoca um arranco de vento fazendo esvoaçar cabelos um e outro papel que vem voando não se sabe bem de onde. Entram todos, procuram primeiro os bancos junto das janelas, mas o acrílico fosco das janelas não ajudam muito a ver lá fora. Ali um senhor obeso ocupa banco e meio, obrigando a jovem senhora a ficar com meia anca somente sobre o banco, o resto apóia-se sobre um trecho de balaústre. Um e outro de pé, junto das portas. Parte o comboio, e como às vezes os motores eléctricos desligam – pois são autônomos, cada vagão tem uma unidade motriz – religam dando um considerável solavanco, o suficiente para acabar com um cochilo.
É um trem, sobre os trilhos – e vão as rodas batendo contra as eventuais emendas das peças dos trilhos, aparatos de desvios, fazendo aquele tão notório rumor do trem em movimento. Chia nas curvas, inclina docemente, reduz subtilmente a velocidade e eis que surge uma nova estação, muito similar de onde se saiu há pouco, menos ampla, só que sem a cobertura central, mais luminosa. O trem espantou os pombos que valsavam a sua eterna valsa amorosa na ponta da plataforma. Seis minutos de uma estação à outra, o relógio da plataforma avisa. Pára o trem, não sem antes um resfolegar de ar comprimido – do mecanismo das portas. Estou junto da janela, olhando para a plataforma de pedra, vazia. O bilheteiro, do outro lado, na sua diminuta cabine, percebe o meu olhar inspetor e manda-me um bem insolente e audacioso; mudo o ângulo de visão. As pombas – talvez não sejam as mesmas, certamente não são – vêm novamente à plataforma, disputam farelos sabe-se lá do que, que por acaso estão na plataforma. Essas cenas repetem-se, todo dia, vou indo com a cara estampada no acrílico da janela. Como diz uma certa música, «la pigrizia è la tua regina, il pensiero vagabondo è il re».
Mas há algo fora do comum hoje; uma música estranha. E do lado externo da estação, uma fanfarra de cinco velhinhos toca uma marcha animada e bufona, constrastando com todo o resto, inclusive no vermelho dos seus uniformes.

1 Comentários:

Blogger Camila Rodrigues disse...

Adoro histórias de trens...

terça-feira, março 14, 2006 11:48:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home