quinta-feira, dezembro 8

229. Campanário

A Irene.

I

Sobre a pequena colina,
há uma diminuta igreja.
Hoje de salmão coberta
(ou talvez flamingo).

Tem um campanário,
não muito elevado -
mas que pela altura
domina o vale encharcado
pelas chuvas estivas.
Mas o pequeno templo
está sempre iluminado
pelo sol mórbido dos meus recordos,
alegres e doloridos.
Uma luz baça e fosca

e onde quer que eu vá,
onde quer que eu esteja,
estou sob a sombra
ubíqua e amena
desse santo campanário.
Mesmo de noite
pelas contradas e atalhos
vislumbro seu contorno
destacado fraco na escuridão
e coroado de estrelas.

II

Ah, Campanário,
Tanto já se foi
desde o tempo que eu acendia
não sei para quais santos
sob o olhar aprovador de minha mãe
e o gentil gesto do padre.

Tanto já se passou desde então,
Campanário, desde que
perdi tua imagem real
do meu campo. Tanto tempo já
desde a minha velha casa
via teu cimo,
e o quintal cheio de folhas de caquizeiro.
O trem deslizando
ao Rio de Janeiro,
a grande praça sem praça
formada pelo deságüe de várias ruas
(ainda havia ali paralelepípedos)

E enfurnado entre as árvores
da calçada e as da escola
havïa um parquinho poeirento
de terra vermelha,
onde avôs de grossos óculos
levavam os netos para brincar,
e na expressão de cada um,
na pele arada pelos anos,
uma melancólica felicidade
atrás dos óculos
e da barba áspera qual um cacto.

Ah, quanto tempo já é passado.
Já é passado - recordações
que se entulham no fundo da alma
e hoje servem somente a incomodar,
somadas às novas angústias.

III

Não, Campanário,
não a conheces;
não conheces a moça
dos cabelos noturnos
a quem dedico
meus pensamentos,
minhas vontades.

Mas há algo no passado
- como se no teu relógio,
Campanário, faltasse,
ou por descuido do mecânico
ou por má-fé de anônimo,
faltasse uma peça,
um pequeno parafuso,
uma mola minúscula
que te impedisse
o destro contar do tempo.
Mas há, Campanário, algo
que me obsta as minhas engrenagens
e nada anda,
e quando me esforço, recua.

Mesmo que eu lubrifique
o mecanismo das coisas
com as minhas saladas lágrimas,
inda mais se enferrujam;
e as engrenagens oxidadas
atritam e esquentam.

Se me travam, Campanário,
se me travam! E cada dia
que me rego do leito
e vem o Sol anunciar
que o tempo não parou,
que nasce o dia,
uma terrível angústia
me doma,
e comporto-me como um autômato.

Desde manhã e pelo dia todo,
agüentando desaforos,
e cada desaforo, Campanário,
uma a cada mover dos teus ponteiros
são como um golpe de machado
dum experïente lenhador.
E de golpe em golpe
tolheu-se-me o caquizeiro
das minhas esperanças.

E o tempo se faz vazio.

4 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

As janelas das casas em que morei davam para cortiços. Não dá para ser poético.

quinta-feira, dezembro 08, 2005 7:40:00 da tarde  
Blogger Jeferson Ferreira disse...

muito bom... é teu este poema?

sábado, dezembro 10, 2005 1:03:00 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

(...)uma melancólica felicidade
atrás dos óculos
e da barba áspera qual um cacto...

Gostei e faço a mesma pergunta que o Jeferson...

Fátima

domingo, dezembro 11, 2005 1:07:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Eu admito: é meu, é meu sim...

domingo, dezembro 11, 2005 1:33:00 da tarde  

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