terça-feira, julho 26

Duas pequenas histórias sobre dinheiro

É notório que a situação econômica de meados da década de 1980 a 1994 foi catastrófica em vários sentidos; hoje a catástrofe não é tão aparente, porque um dos maiores sintomas e evidentemente tão perceptível quanto uma girafa dentro dum elevador, era o vórtice hiper-inflacionário. Para que a moeda brasileira (independentemente do da volatilidade numérica ou onomástica) mantivesse as aparências, o governo usou e abusou do recurso do corte-dos-três-zeros, onde mil unidades monetárias passavam a ser, à meia-noite de alguma data obscura, uma unidade monetária nova, tal-qualmente quando entramos no horário de verão. A inflação que beirou os 50% mensais, obrigou a Fazenda a fazer esse tipo de operação com alguma freqüência: no início de 1986 (quando mil cruzeiros passaram a ser um cruzado), em 1989 (quando mil cruzados passaram a ser um cruzado novo e depois mudou-se o nome da moeda, em 1990, novamente para cruzeiro, mas sem corte de zeros) e por fim em 1993, quando mil cruzeiros passaram a ser um cruzeiro-real. Fora a confusão dos zeros, o problema do nome; problemático principalmente para as pessoas de idade, algumas ainda tratando a moeda como mirréis – variante popular de mil-réis, unidade monetária até 1942 – e outras ainda mais proverbiais como vintém, tostão, pataca e cobre, cada uma com um embasamento histórico-social, que não cabe agora.
Da minha parte, lembro de duas ocorrências peculiares envolvendo meu pai, exímio crítico do Governo (independente de qual seja) e da Política Econômica (tanto faz se keynesiana ou neo-liberal). O curioso é que as histórias têm uma certa divergência.

I.

Estávamos na fila do caixa do mercado, eu, meu pai e minha mãe; a fila estava imensa, porque fora dia de pagamento o dia anterior e as pessoas tinham o costume de fazer as comprar do mês – e até para os dois ou três meses seguintes – de uma vez para que o dinheiro não desvalorizasse e perdesse 50% do seu poder de compra do dia 5 de um mês até o dia 5 do outro. Pois bem, a fila imensa, dez ou doze carrinhos lotados, o que gerava uma expectativa de pelo menos 40 minutos a uma hora de fila.
Meu pai e minha mãe conversavam sobre meu avô, pai de minha mãe que morrera recentemente – e era sempre muito bem lembrado nessas ocasiões por sua folclórica aversão a super-mercados – quando, de-improviso, papá quis conferir um preço de uma bolacha – ou de um pacote de guardanapos, não me lembro bem:
— 45 cruzeiros?
— Não, bem – fez minha mãe – 45…
— 45 cruzados. – interrompeu o genitor.
— Também não… são 45 cruzados-novos…
Papá fez uma cara de fastio e de pouca-importância.
— Se chamasse merda dava no mesmo…
— Benhê! – fez a minha mãe, numa raiva contida. — Mas é mesmo…

II.

Certa feita, estávamos eu e meu pai no ponto de ônibus, aguardando o colectivo para a Cidade (1). Um dia particularmente ensolarado, provavelmente de verão e eu felicíssimo, pois quando era menor, eu não desgrudava do meu pai. Parados na calçada, em frente a praça olhando para a rua de onde o ônibus deveria ter saído há bons vinte minutos, desceu um homem de terno, resmungando; olhei para o meu pai e ele também havia visto e observava o homem, que praguejava e olhava para o seu sapato. Papá abaixou até o meu ouvido.
— Olha lá; eu falo pra você olhar bem onde pisa; aquele ali pisou onde não devia.
— Onde pai? – fiz eu curioso.
— Onde os cachorros põe aqueles avisos de «não pise aqui», sem letras… lembra?
— Ah, lembro.
Ao final desse didático e lúdico diálogo entre pai-mestre e filho-aprendiz, o homem estava a não mais de três metrôs de nós e constatava-se facilmente que ele havia pisoteado massa fecal canina por alguma calçada acima. Meu pai me deu uma olhadela de canto-de-olho e indicou com a sobrancelha.
Nisso, o homem abriu a carteira, e tirou uma nota de dez cruzados e, sob o olhar perplexo de todos os presente no ponto, limpou com ela o bico do sapato onde parte da massa havia subido. Fez uma bolinha da nota e mandou-a longe. Meu pai olhou de novo para mim; achei estranho a reação do homem, e depois que ele entrou no ônibus para a Penha, tornou-se o assunto no ponto. Meu pai conversava com os outros candidatos a passageiro, indignado. Em casa, representou mimeticamente a cena para minha mãe.
— E pegou a nota de dez cruzados e, zac!, passou ela na ponta do sapato, sujo de merda; e fez uma bolinha da nota e poc! jogou-a no meio-fio!
Ao mesmo tempo que achava a atitude do homem de terno grosseira e de mau-gosto, dobrava de rir com o pasmo e assombro de meu pai, exagerados por grandes gestos.

(1) leia-se o centro da Cidade de São Paulo.

1 Comentários:

Blogger Jeferson Ferreira disse...

dinheiro é uma coisa muito versátil! atualmente, o melhor exemplo é a cueca!

terça-feira, julho 26, 2005 1:50:00 da tarde  

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