Um excomungado em trânsito
(extraído e adaptado de«I diari di Beppe»)
Acordei com um tremendo mau-humor e um absoluto desprezo por tudo e por todos. Se Deus aparecesse na minha frente, o mandava às favas. E mesmo dessa maneira, minha consciência loquaz mandava-me ir a trabalhar; já é um martírio pegar ônibus e metrô pela manhã, hoje o foi em dobro. A cada estação, a voz guinchada e estridente do condutor enfastiava-me, comecei a rugir insultos, por dentre os dentes. E a escumalha que corre em direção aos vagões, pelas estações! Passou perto de mim, na estação de baldeação, uma moça correndo de salto alto; se dependesse de mim, tinha tropeçado e rolado escada rolante a baixo, ou que um dos saltos quebrasse; chamei-a de idiota.
Descido na estação, passei rente a uma fila de ônibus, totalmente descompassada (os estúpidos nem mais fila sabem fazer!); da fila, evidenciava-se uma senhora, inclinada para a lateral, para fora da fila, que falava extremamente alto num telefone público, ostentando mando, provavelmente falava com a empregada. Fui chegando, rente à fila, mais próximo dela, rugi um «estúpida» e mais perto, passei junto da orelha livre e fiz com os lábios um sonoro «brrrrrrrl!», sem parar de andar. As pessoas em volta nem perceberam (porque as pessoas vivem distraídas com coisas idiotas) e a mulher pôs-se a ofender-me aos gritos. Nem me virei.
Cheguei no escritório, depositei o casaco nas costas da cadeira e pus o cachecol em cima do apoio da máquina de escrever. Sentei-me e comecei a trabalhar, o mesmo trabalheco estúpido de sempre, carimbinhos, assinaturazinhas, e bobeirinhas consuetas e congêneres. E de-repente, eis que surge a mocinha da ginástica laboral. E pessoalmente, ponho-me contra qualquer actividade que se proponha a trazer benefícios que teoricamente eu deveria ter, como bem-estar e relacionamento com os colegas, per scherzo, chamo a ginástica laboratorial, ao invés de laboral. Geralmente, levanto-me e faço com a maior má-vontade e de cara fechada; hoje nem me levantei, continuei virado para o computador.
— Você não vai fazer a ginástica hoje? – perguntou-me solícito a moçoila.
— Me diz uma coisa. – disse virando-me num golpe – é verdade que esse treco de ginástica laboral foi os japoneses que inventaram? Que foi nas empresas japonesas na década de 20 e que no começo era tipo tai-chi-chuan?
— É… - ficou perplexa – é mais ou menos isso…
— Pois é… você lá leu algo sobre filosofia oriental? – foi uma pergunta retórica.
— Não…
— Pois é, é uma coisa extremamente vazia… e eu como bom ocidental, com quase 3000 anos de cultura nas costas, é-me impossível fazer ginástica laboral ou qualquer outro nome que se lhe dê, por princípios civilizatórios.
Virei-me bruscamente para a máquina.
— Ah… ha, ha. Não tem problema então… - foi silabando a moça – fica aí… não precisa fazer… he, he… quem sabe na próxima vez, né.
Virei a cabeça e olhei feio para ela.
* * *
À noite, antes da aula, fui tomar uma café; mas como vivo sem um centavo no bolso, geralmente aproveito as idas de Baccicia até o café dos funcionários, ele pode, porque é funcionário da biblioteca central, eu vou na sua sombra. E justo hoje não encontrei Baccicia antes da aula, nem Totò, do departamento de Dialetologia. Arrisquei e entrei sozinho, apropriei-me de um copo de plástico e quando cheguei junto da garrafa, uma voz feminina esganiçada inquiriu-me quase histericamente:
— O senhor! O senhor é funcionário da Faculdade? – encarou-me – é professor?!
Eu nem tenho onde cair morto; estudo somente. Tive de pensar numa saída criativa.
— Sim? Como? Perdão…? – fingi de desentendido.
— O senhor é vinculado à Faculdade? – mediu-me de cima a baixo. – Às vezes eu o vejo a andar pelos corredores; e já vieste cá co Giambattista.
Ninguém quase chamava Baccicia pelo nome de batismo. Ela estava se agarrando em precárias referências.
— Sim, eu sou amigo do Baccicia… - procurei demonstrar familiaridade.
— Mas isso não lhe dá direito de tomar o café daqui. Se quiser café, há lá na cafeteria, a vinte liras a xícara…! O senhor por acaso acha que é professor?!
A essa altura a mulher já gritava e brandia as mãos. Por sorte não havia ninguém no café dos funcionários. Continuei com o mesmo ar imperturbável.
— Mas… eu sou professor… peço desculpas se…
— Deus! – interrompeu-me já roxa – o senhor é professor? Mil desculpas! Sabe, às vezes não consigo distinguir… a cabeça vai ficando fraca, a idade… - o tom da voz foi baixando progressivamente, quase em escala exponencial, ao final do período quase não mais se ouvia.
Fingi uma imensa bonomia.
— Ora, não se preocupe… tem leite?
Fez uma careta de «nossa! como sou estúpida» e foi para trás do balcão. Voltou com uma jarra de leite, e vinha tão branca como o conteúdo da jarra. Tentou ainda um último remendo, imaginando qu’eu estivesse ofendido.
— He, he… o leite, né? Ha, ha… o café… he, he… - alguns instantes – mas, o senhor, professor, dá aula de que?
Suspirei e disse gravemente, espalmando a mão como quem espalha sementes.
— Leciono duas disciplinas: Introdução de técnicas mediúnicas no xadrez moderno e Interação diatópica entre Lingüística e Colostomia.
— Ah! - fez estupefacta a moça do café.
6 Comentários:
"Princípios civilizatórios" será doravante minha principal escusa para esquivar-me de práticas pouco dignas como essa.
Por mais dignas que sejam tais práticas, seu fulcro é abjeto e imperialista: domesticar corpos para que trabalhem mais tempo sem precisar de manutenção/repressão. Os dignos orientalistas, os poucos que há, não se misturam a essa rafaméia de charlatões. Pensem, por exemplo, no glorioso exemplo do nosso Venrável Mestre Tong Yu.
primeiro... eu curto ginástica laboral, seu bosta... já q é p morrer trabalhando, q seja com dignidade, e não todo entrevado feito um puto filho de um cão cagado. segundo, no café, comigo, a desculpa do prof. não funcionou comigo, acho q tenho cara de moleque, mesmo... terceiro, naõ esqueça de mandar p mim os estudos q pedi, sobre rabelais e o renascimento ( o q vc puder conseguir). E-mail jeff.ferreira@gmail.com
Policiais americanos fazem ginástica laboral com café e rosquinhas. Mandam no mundo, você sabe.
Honolável Tong Yu não lecomenda desplezível "ginástica labolal". Não passa de plática ocidentalizante, detulpação de artes milenales. O Japão a adotou no pós-guela, cleio, quando lesolveu tolnal-se o país oliental mais ocidental que existe. E a China é comunista há tempo demais, não melece comentálios.
Colostomia & Oriente, cuidado com idéias fixas!
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